domingo, 3 de junho de 2018

O Gigante Enterrado

3.



Se você visse a aldeia saxã à distância e a certa altura, ela teria lhe parecido mais familiar como “aldeia” do que o abrigo de Axl e Beatrice. Por uma razão: não havia nenhuma escavação colina adentro, talvez porque os saxões tivessem um senso mais aguçado de claustrofobia. Se estivesse descendo a encosta íngreme do vale, como Axl e Beatrice estavam fazendo naquele fim de tarde, você veria lá embaixo cerca de quarenta casas independentes, dispostas no fundo do vale em dois círculos irregulares, um dentro do outro. Talvez estivesse longe demais para notar as variações de tamanho e de luxo entre elas, mas teria visto os telhados de colmo e percebido que muitas delas eram casas redondas não muito diferentes do tipo de casa em que alguns de vocês, ou talvez seus pais, cresceram. E se sacrificavam de bom grado um pouco de segurança em troca dos benefícios do ar livre, os saxões tinham o cuidado de compensar isso: uma cerca alta, feita de mastros de madeira amarrados uns aos outros e pontiagudos como lápis gigantes, circundava a aldeia inteira. Em qualquer ponto, a cerca tinha pelo menos o dobro da altura de um homem e, para tornar a ideia de escalá-la ainda menos tentadora, um fosso profundo acompanhava todo o contorno da cerca pelo lado de fora.


Essa seria a imagem que Axl e Beatrice veriam logo abaixo quando pararam para recuperar o fôlego, enquanto desciam a encosta. O sol agora estava se pondo sobre o vale, e Beatrice, que enxergava melhor, estava mais uma vez se inclinando para a frente, um ou dois passos adiante de Axl, o capim e os dentes-de-leão ao seu redor batendo em sua cintura.


“Eu estou vendo quatro, não, cinco homens guardando o portão”, ela disse. “E acho que eles estão armados com lanças. Quando estive aqui pela última vez com as mulheres, era só um guarda com um par de cães.”


“Você tem certeza de que vamos ser bem recebidos aqui, princesa?”


“Não se preocupe, Axl, a essa altura eles já me conhecem muito bem. Além do mais, um dos anciãos deles é um bretão que é considerado por todos um líder sábio, apesar de não ser do mesmo sangue que os demais. Ele vai providenciar um abrigo seguro para passarmos a noite. Mesmo assim, Axl, acho que aconteceu alguma coisa e estou aflita. Agora chegou mais um homem com uma lança e veio trazendo um bando de cães ferozes.”


“Quem entende o que se passa na cabeça dos saxões?”, disse Axl. “Talvez seja melhor procurarmos abrigo em outro lugar esta noite.”


“Já, já vai escurecer, Axl, e aquelas lanças não são por nossa causa. Além disso, há uma mulher lá que eu gostaria de visitar, uma mulher que entende mais de remédios que qualquer pessoa de nossa aldeia.”


Axl ficou esperando que Beatrice dissesse mais alguma coisa. Como ela continuou calada, perscrutando o que acontecia ao longe, ele perguntou: “E por que você precisaria de remédios, princesa?”.


“É um pequeno desconforto que eu sinto de vez em quando. Essa mulher pode conhecer alguma substância que alivie isso.”


“Que tipo de desconforto? Onde é que você sente esse incômodo?”


“Não é nada, não. Só lembrei disso porque vamos precisar procurar abrigo aqui de qualquer forma.”


“Mas onde é, princesa? Essa dor?”


“Ah...” Sem se virar para Axl, ela pôs uma das mãos na lateral do corpo, logo abaixo das costelas, e depois riu. “Não é nada de mais, não. Hoje você viu que isso não diminuiu o ritmo da minha caminhada até aqui.”


“Não diminuiu mesmo. Eu é que precisei ficar implorando para nós pararmos para descansar.”


“É o que estou dizendo, Axl. Então não é nada que seja motivo de preocupação.”


“Não diminuiu nem um pouco mesmo. Na verdade, acho que você está tão forte quanto qualquer mulher com a metade da sua idade. Mesmo assim, se há uma pessoa aqui que pode ajudar a aliviar essa sua dor, que mal vai fazer se a procurarmos?”


“Era exatamente o que eu estava dizendo, Axl. Eu trouxe um pouco de estanho para trocar por remédios.”


“Quem gosta dessas dorzinhas? Todos nós as temos e todos nós nos livraríamos delas se pudéssemos. Então, não há a menor dúvida de que temos de ir até essa mulher, se ela estiver aqui e aqueles guardas nos deixarem passar.”


Já estava quase escuro quando eles atravessaram a ponte que passava por cima do fosso, e as tochas dos dois lados do portão foram acesas. Os guardas eram grandes e corpulentos, mas pareceram ficar em pânico quando viram os dois se aproximarem.


“Espere um pouco, Axl”, Beatrice disse em voz baixa. “Eu vou sozinha falar com eles.”


“Não chegue perto das lanças, princesa. Os cães parecem calmos, mas aqueles saxões parecem ensandecidos de medo.”


“Se é você que eles temem, Axl, mesmo velho como está, logo vou lhes mostrar o quanto estão enganados.”


Ela foi andando com intrepidez até eles. Os homens se agruparam em volta dela e, enquanto Beatrice falava, eles lançavam olhares desconfiados na direção de Axl. Então, um deles ordenou, na língua saxã, que Axl chegasse mais perto das tochas, presumivelmente para que pudessem conferir se ele não era um homem mais jovem disfarçado de velho. Em seguida, depois de trocarem mais algumas palavras com Beatrice, os homens permitiram que o casal passasse.


Axl ficou espantado de uma aldeia que à distância parecia se constituir de dois círculos organizados de casas acabar se revelando um labirinto tão caótico agora que eles estavam caminhando por suas vias estreitas. É bem verdade que estava escurecendo, mas, enquanto seguia atrás de Beatrice, Axl não conseguia encontrar nenhuma lógica nem padrão naquele lugar. Edificações surgiam inesperadamente na frente deles, bloqueando o caminho e forçando-os a entrar em desnorteantes vielas transversais. Além disso, eles eram forçados a andar com mais cautela ainda do que na estrada, pois não só o chão era todo esburacado e estava cheio de poças provocadas pela tempestade recente, como os saxões pareciam considerar aceitável deixar objetos aleatórios, até mesmo entulho, largados pelo caminho. Mas o que mais intrigava Axl era o odor que ora ficava mais forte, ora mais fraco conforme eles iam andando, mas nunca desaparecia. Como qualquer pessoa do seu tempo, Axl já estava bem acostumado com o cheiro de excremento, humano ou animal, mas aquilo era bem mais repugnante. Não demorou muito, ele descobriu a origem do odor: por toda a aldeia, as pessoas haviam deixado do lado de fora, na frente das casas ou do lado da rua, montes de carne em putrefação como oferendas para seus diversos deuses. Num dado momento, assaltado por um fedor particularmente forte, Axl tinha se virado e visto, pendurado no beiral de uma cabana, um objeto escuro que mudou de forma diante de seus olhos, quando a colônia de moscas pousada em cima do objeto se dispersou. Um instante depois, eles depararam com um porco sendo arrastado pelas orelhas por um grupo de crianças. Viram também cachorros, vacas e asnos soltos, sem que ninguém os vigiasse. As poucas pessoas que eles encontravam ficavam olhando fixa e silenciosamente para eles ou se escondiam mais que depressa atrás de uma porta ou cortina.


“Tem alguma coisa estranha aqui hoje”, Beatrice sussurrou enquanto eles caminhavam. “Normalmente, eles estariam sentados na frente das casas ou reunidos em círculos, conversando e rindo. E as crianças a essa altura já estariam nos seguindo, fazendo centenas de perguntas e tentando decidir se iriam nos xingar ou ser nossas amigas. Está tudo quieto demais, e isso está me deixando nervosa.”


“Nós estamos perdidos, princesa, ou ainda estamos indo para o lugar onde eles vão nos abrigar?”


“Eu estava pensando em visitar a mulher dos remédios primeiro, mas com as coisas do jeito que estão, talvez seja melhor irmos direto para a velha casa comunitária, para evitar confusão.”


“Ainda falta muito para chegarmos à casa da mulher dos remédios?”


“Pelo que eu me lembro, falta bem pouco agora.”


“Então vamos ver se ela está lá. Mesmo que o que você esteja sentindo seja só uma coisa boba, como nós sabemos que é, não faz sentido ficar com dor se ela pode ser curada.”


“Dá para esperar até amanhã de manhã, Axl. Não é nem uma dor que eu note, quando não estamos falando sobre ela.”


“Mesmo assim, princesa, agora que já estamos aqui, por que não ir de uma vez consultar essa sábia senhora?”


“Nós podemos ir, se você faz questão, Axl. Embora eu pudesse tranquilamente deixar isso para amanhã ou talvez para a próxima vez em que eu passar por aqui.”


Enquanto conversavam, eles dobraram uma esquina e depararam com o que parecia ser a praça da aldeia. Uma fogueira ardia no centro da praça e, ao redor, iluminada pela claridade do fogo, uma multidão se aglomerava. Havia saxões de todas as idades, até mesmo crianças pequeninas no colo dos pais, e a primeira coisa que veio à cabeça de Axl foi que eles haviam topado com uma cerimônia pagã. No entanto, quando pararam para observar a cena diante deles, Axl percebeu que a atenção da multidão estava dispersa. Os rostos que ele conseguia ver tinham uma expressão grave, talvez assustada. As vozes eram baixas e, juntas, chegavam até eles como um murmúrio apreensivo. Um cachorro latiu para Axl e Beatrice e foi prontamente enxotado por vultos escuros. As pessoas da multidão que notavam a presença dos visitantes olhavam para eles com rostos sem expressão e logo depois perdiam o interesse.


“Quem é que sabe o que eles estão fazendo aqui, Axl”, disse Beatrice. “Eu daria meia-volta agora mesmo, se a casa da mulher dos remédios não ficasse em algum lugar aqui por perto. Deixe-me ver se ainda consigo encontrar o caminho até lá.”


Enquanto andavam em direção a uma fileira de cabanas à direita, eles se deram conta de que havia muito mais gente nas sombras, observando em silêncio a multidão reunida em volta do fogo. Beatrice parou para falar com uma dessas pessoas, uma mulher que estava diante da porta da sua própria casa, e depois de algum tempo Axl percebeu que aquela era a mulher dos remédios. Ele não estava conseguindo enxergá-la direito naquela penumbra, mas distinguiu a silhueta de uma mulher alta, de costas eretas, provavelmente de meia-idade, segurando um xale em torno dos braços e dos ombros. Ela e Beatrice continuavam conversando em voz baixa, às vezes olhando de relance para a multidão, outras vezes para Axl. Passado um tempo, a mulher fez um gesto convidando-os a entrar na cabana dela, mas Beatrice, indo até Axl, disse num tom suave:


“Deixe-me conversar com ela sozinha, Axl. Ajude-me a tirar essa trouxa das costas e espere por mim aqui fora.”


“Eu não posso ir com você, princesa, mesmo sem entender quase nada da língua saxã?”


“São assuntos de mulher, marido. Deixe-me conversar com ela sozinha. Ela me disse que vai examinar esse meu velho corpo com cuidado.”


“Desculpe, eu não estava pensando direito. Deixe-me pegar sua trouxa e pode ficar tranquila que espero aqui por quanto tempo você quiser.”


Depois que as duas mulheres entraram na cabana, Axl sentiu um enorme cansaço, principalmente nos ombros e nas pernas. Tirando a própria trouxa das costas, ele se encostou na parede de turfa atrás de si e ficou observando a multidão. Havia agora uma crescente agitação: pessoas saíam andando às pressas da escuridão ao redor dele para se juntar à multidão, enquanto outras se afastavam correndo do fogo só para voltar instantes depois. As chamas iluminavam alguns rostos intensamente e deixavam outros na penumbra, mas depois de algum tempo Axl chegou à conclusão de que todas aquelas pessoas estavam esperando, com certa apreensão, que alguém ou alguma coisa emergisse da enorme casa de madeira situada à esquerda da fogueira. Dentro desse casarão, provavelmente um local de reuniões dos saxões, também devia haver uma fogueira acesa, pois suas janelas se esboçavam, oscilando entre a escuridão e a luz.


Axl estava prestes a cochilar, encostado na parede, ouvindo as vozes abafadas de Beatrice e da mulher dos remédios em algum ponto atrás dele, quando a multidão se agitou e se deslocou, soltando um leve grunhido coletivo. Alguns homens tinham saído do casarão de madeira e estavam andando em direção à fogueira. A multidão se aquietou e abriu caminho para eles, como na expectativa de uma declaração, mas nenhuma foi feita, e logo várias pessoas começaram a se aglomerar em torno dos recém-chegados, as vozes se elevando novamente. Axl notou que a atenção da multidão estava quase toda concentrada no homem que havia saído por último do casarão. Ele provavelmente não tinha mais que trinta anos, mas transmitia uma autoridade natural. Embora estivesse vestido com simplicidade, como um lavrador, não se parecia com ninguém naquela aldeia. Não era apenas o modo como havia jogado seu manto sobre um ombro, deixando à mostra o cinto e o punho da espada. Também não era simplesmente porque seu cabelo era mais comprido do que o de qualquer outro aldeão — pendia quase até os ombros, e ele havia prendido parte dos fios com uma tira de couro, para evitar que lhe caíssem nos olhos. Na verdade, o pensamento que passou pela cabeça de Axl foi que aquele homem havia prendido o cabelo para impedir que lhe tapasse a visão durante o combate. Essa ideia ocorrera de forma muito natural e só depois, ao refletir sobre isso, foi que ela o espantou, pois trazia em si um elemento de reconhecimento. Além disso, quando o estranho deixou que sua mão pousasse no punho da espada ao caminhar para o meio da multidão, Axl havia sentido, de modo quase tangível, o misto peculiar de alívio, alvoroço e medo que aquele movimento era capaz de despertar. Dizendo a si mesmo que voltaria a pensar nessas curiosas sensações mais tarde, Axl as tirou da cabeça e se concentrou na cena que se desenrolava diante dele.


Era a postura do homem, o modo como ele se movimentava e se posicionava, que tanto o distinguia dos que estavam ao seu redor. “Não adianta ele tentar se passar por um saxão comum”, pensou Axl, “esse homem é um guerreiro. E talvez um guerreiro capaz de provocar grandes estragos quando quer.”


Dois dos outros homens que haviam saído do casarão de madeira seguiam atrás dele de um jeito nervoso e, sempre que o guerreiro avançava mais fundo multidão adentro, ambos faziam o melhor que podiam para ficar perto dele, como crianças receosas de se perder do pai. Os dois homens, bastante jovens, também portavam espadas e, para completar, carregavam lanças na mão, mas notava-se que não estavam nem um pouco acostumados a usar essas armas. Além do mais, tinham bastante medo e pareciam não conseguir responder às palavras de incentivo que os outros aldeões estavam lhes dirigindo. Viravam os olhos de um lado para o outro, em pânico, mesmo enquanto outras pessoas lhes davam tapinhas nas costas ou lhes apertavam os ombros.


“O sujeito de cabelo comprido é um estranho que só chegou aqui uma ou duas horas antes de nós”, Beatrice havia dito no ouvido de Axl. “É saxão, mas de uma terra distante. Lá dos pântanos do leste, segundo ele próprio disse, onde ultimamente tem combatido saqueadores vindos do mar.”


Axl havia percebido já fazia algum tempo que a voz das mulheres tinha ficado mais nítida e, virando-se, viu que Beatrice e sua anfitriã tinham saído da casa e estavam paradas em frente à porta, logo atrás dele. Então a mulher dos remédios começou a falar em voz baixa, em saxão. Quando ela terminou de falar, Beatrice disse no ouvido dele:


“Parece que hoje mais cedo um dos aldeões voltou para cá esbaforido e com o ombro machucado. Quando conseguiram fazer com que se acalmasse, contou que ele, o irmão e um sobrinho, um menino de doze anos, estavam pescando no rio, no lugar de costume, quando foram atacados por dois ogros. Só que, de acordo com esse homem ferido, não eram ogros comuns, mas sim monstruosos, mais rápidos e mais espertos do que qualquer ogro que ele já tivesse visto. Os demônios — pois é assim que esses aldeões estão se referindo a eles — mataram o irmão dele na mesma hora e carregaram o menino, que estava vivo e se debatendo. O próprio homem ferido só conseguiu escapar depois de correr um bocado pela trilha da margem do rio, perseguido o tempo inteiro por grunhidos medonhos que pareciam chegar cada vez mais perto, mas no fim acabou conseguindo deixar os ogros para trás. É aquele que está ali agora, Axl, com a tala no braço, conversando com o estranho. Mesmo ferido, ele estava tão preocupado com o sobrinho que resolveu conduzir um grupo formado pelos homens mais fortes da aldeia de volta até o local, e eles viram a fumaça de uma fogueira perto da margem do rio. Quando estavam se aproximando de mansinho da fogueira, de armas em punho, os arbustos se abriram e parece que eram os mesmos dois demônios de antes, que tinham preparado uma armadilha. A mulher dos remédios diz que três homens foram mortos antes mesmo que os outros pensassem em correr para salvar a própria vida e, embora tenham voltado para casa ilesos, muitos deles agora estão na cama, tremendo e resmungando sozinhos, apavorados demais para sair de casa e desejar boa sorte a esses homens valentes que estão dispostos a ir até lá agora, mesmo com a noite caindo e a névoa chegando, para fazer o que doze homens fortes não conseguiram fazer em plena luz do dia.”


“Eles sabem se o menino ainda está vivo?”


“Não sabem de nada, mas vão até o rio assim mesmo. Depois que o primeiro grupo voltou em pânico, não havia um único homem com coragem bastante para concordar em participar de uma nova expedição, apesar de toda insistência dos anciãos. Então, por obra do acaso, aquele estranho chegou à aldeia em busca de abrigo para passar a noite, depois que o cavalo dele machucou uma pata. E embora nada soubesse do menino nem da família dele antes de chegar aqui, ele declarou estar disposto a ajudar a aldeia. Aqueles que estão indo junto são outros dois tios do menino e, pelo jeito deles, eu diria que é mais provável que acabem atrapalhando o guerreiro do que lhe prestando algum auxílio. Olhe, Axl, eles estão tremendo de medo.”


“Estou vendo, princesa. Mas, ainda assim, são homens corajosos, por se disporem a ir mesmo estando com tanto medo. Escolhemos uma noite ruim para pedir a hospitalidade desta aldeia. Há choro em algum lugar agora, e pode haver muito mais antes que a noite termine.”


A mulher dos remédios pareceu entender alguma coisa do que Axl tinha dito, pois falou de novo, em sua própria língua. Em seguida, Beatrice disse: “Ela falou para irmos direto para a velha casa comunitária e não aparecermos de novo até de manhã. Se decidirmos ficar perambulando pela aldeia, ela diz que não há como prever se seremos bem recebidos numa noite como esta”.


“Exatamente o que eu pensei, princesa. Então vamos seguir o conselho da boa senhora, se você ainda conseguir lembrar o caminho.”


No entanto, justo naquele momento, a multidão fez um barulho repentino, depois o barulho se transformou em brados de estímulo, e ela se agitou de novo, como se estivesse lutando para mudar de forma. Então, começou a avançar, com o guerreiro e seus dois companheiros no meio da aglomeração. Em seguida, a multidão começou a cantar baixinho, e logo os espectadores que estavam nas sombras se uniram ao grupo, incluindo a mulher dos remédios. A procissão veio andando na direção deles e, embora a claridade do fogo tivesse ficado para trás, várias tochas estavam se deslocando com a multidão, de modo que Axl conseguia ver rostos de relance, alguns assustados, outros entusiasmados. Quando acontecia de uma tocha iluminar o guerreiro, sua expressão estava sempre calma. Ele olhava para um lado e para o outro como resposta às palavras de encorajamento que recebia, a mão mais uma vez pousada no punho da espada. Eles passaram por Axl e Beatrice, seguiram por entre duas fileiras de casas e sumiram de vista, embora o canto suave tenha permanecido audível durante algum tempo.


Talvez intimidados por aquela atmosfera, Axl e Beatrice ficaram imóveis durante algum tempo. Depois, Beatrice começou a fazer perguntas à mulher dos remédios acerca do melhor caminho para a casa comunitária, e logo Axl teve a impressão de que as duas mulheres estavam discutindo como chegar a outro destino completamente diferente, pois apontavam e faziam gestos na direção das colinas distantes situadas acima da aldeia.


Só quando a quietude se instalou na aldeia eles finalmente se dirigiram aos alojamentos. Estava mais difícil do que nunca encontrar o caminho na escuridão, e as tochas acesas em esquinas esporádicas pareciam apenas aumentar a confusão com as sombras que produziam. Eles andavam no sentido oposto ao que a multidão havia seguido, e as casas por que passavam estavam escuras e sem nenhum sinal evidente de vida.


“Ande devagar, princesa”, Axl disse suavemente. “Se um de nós dois levar um tombo feio neste chão, eu não sei se alguma alma vai aparecer para nos ajudar.”


“Axl, acho que nós nos perdemos de novo. Vamos voltar para a última esquina. Não é possível que eu não ache o caminho desta vez.”


Passado um tempo, a trilha ficou mais reta e eles se viram andando ao lado da cerca perimetral que tinham visto da colina. Os mastros pontiagudos da cerca se elevavam acima deles num tom mais escuro do que o do céu noturno, e conforme seguiam adiante, Axl começou a ouvir vozes murmurantes que vinham de algum lugar acima deles. Então, viu que os dois não estavam mais sozinhos: lá no alto, em intervalos irregulares ao longo da barreira, havia formas que ele agora percebia serem de pessoas olhando por cima da cerca para a floresta escura do lado de fora. Axl mal acabara de partilhar essa observação com Beatrice, quando eles ouviram sons de passos se aproximando por trás. Os dois apertaram o passo, mas agora uma tocha estava se movendo ali perto e sombras passavam rapidamente na frente deles. A princípio, Axl pensou que haviam deparado com um grupo de aldeões vindo da direção oposta, mas depois percebeu que ele e Beatrice estavam completamente cercados. Homens saxões de diferentes idades e constituições físicas, alguns com lanças, outros brandindo enxadas, foices e diversas ferramentas, aglomeravam-se em volta do casal. Várias vozes se dirigiram a eles ao mesmo tempo, e parecia estar chegando cada vez mais gente. Axl sentia o calor das tochas apontadas para os seus rostos e, segurando Beatrice junto de si, tentou avistar o líder daquele grupo, mas não encontrou ninguém que parecesse exercer tal função. Além disso, todos os rostos estavam tomados de pânico, e ele se deu conta de que qualquer movimento brusco poderia ser catastrófico. Puxou Beatrice para fora do alcance de um rapaz de olhar particularmente alucinado que havia erguido uma faca trêmula no ar e vasculhou sua memória em busca de alguma frase em saxão. Como nada lhe ocorreu, decidiu fazer sons tranquilizadores, como os que faria para um cavalo arisco.


“Pare com isso, Axl”, Beatrice sussurrou. “Eles não vão te agradecer por cantar cantigas de ninar para eles.” Ela se dirigiu a um homem em saxão e depois a outro, mas os ânimos não melhoraram. Discussões exaltadas começavam a surgir, e um cachorro, puxando uma corda, atravessou a multidão para rosnar na direção deles.


Então as figuras tensas pareceram de repente se retrair. Suas vozes foram se calando, até que só restou uma, que bradava colericamente em algum ponto ainda distante. A voz foi chegando mais perto, e então o grupo se dividiu para abrir caminho para um homem atarracado e deformado, que caminhou arrastando os pés até o meio iluminado da multidão, apoiando-se num grosso cajado.


Ele era bastante idoso e, embora suas costas fossem relativamente retas, o pescoço e a cabeça se projetavam dos ombros num ângulo grotesco. Mesmo assim, todos os presentes pareceram se curvar à sua autoridade — até o cachorro parou de latir e se escondeu nas sombras. Mesmo com seu conhecimento limitado da língua saxã, Axl entendeu que a fúria do homem deformado só se devia em parte ao modo como os aldeões trataram os estranhos; eles estavam sendo repreendidos por terem abandonado seus postos de sentinela, e os rostos iluminados pela luz das tochas adquiriram uma expressão desconsolada, embora cheia de dúvida. Então, quando a voz do ancião se elevou a um nível ainda mais alto de raiva, os homens pareceram lentamente se lembrar de alguma coisa e foram, um a um, voltando para a escuridão da noite. Mas, mesmo depois que o último deles se foi, e ouviam-se sons de pés subindo escadas às pressas, o homem deformado continuou vociferando contra eles.


Por fim, ele se virou para Axl e Beatrice e, passando a falar na língua deles, disse sem nenhum vestígio de sotaque: “Como é possível eles esquecerem até isso e, ainda por cima, tão pouco tempo depois de terem visto o guerreiro partir com dois primos deles para fazer o que ninguém teve coragem de tentar fazer? Será que é a vergonha que deixa a memória deles tão fraca ou é só o medo mesmo?”.


“Eles sem dúvida estão bem apavorados, Ivor”, disse Beatrice. “Se uma aranha caísse perto deles agora, poderia fazer com que estraçalhassem uns aos outros. Lamentável essa guarnição que você enviou para nos receber.”


“Peço desculpas, sra. Beatrice. E ao senhor também. Não foi a acolhida que normalmente teriam aqui, mas, como puderam ver, os senhores chegaram numa noite de muito pânico.”


“Não estamos conseguindo encontrar a casa comunitária, Ivor”, disse Beatrice. “Se o senhor puder nos apontar o caminho, ficaríamos muito gratos. Eu e o meu marido estamos ansiosos para nos recolher e descansar, principalmente depois dessas boas-vindas.”


“Eu gostaria de poder lhes prometer uma boa acolhida na casa comunitária, amigos, mas, numa noite como esta, não há como prever o que os meus vizinhos podem decidir fazer. Eu ficaria mais tranquilo se a senhora e o seu marido concordassem em passar a noite na minha casa, onde sei que os senhores não serão incomodados.”


“Nós aceitamos de bom grado sua gentileza, senhor”, Axl interveio. “Minha esposa e eu estamos muito necessitados de descanso.”


“Então me sigam, amigos. Fiquem bem perto de mim e procurem falar baixo até chegarmos.”


Eles seguiram Ivor escuridão adentro até chegarem a uma casa que, embora muito parecida com as outras na estrutura, era maior e ficava separada das demais. Assim que entraram pelo arco baixo, perceberam que o ar lá dentro estava cheio de fumaça de fogueira, coisa que, ao mesmo tempo em que fazia Axl sentir seu peito se contrair, também o fazia se sentir aquecido e bem-vindo. A fogueira em brasa fumegava no centro do cômodo, cercada de tapetes, peles de animais e móveis de carvalho e freixo. Enquanto Axl tratava de desencavar cobertas de dentro de suas trouxas, Beatrice desabou aliviada numa cadeira de balanço. Ivor, no entanto, permaneceu de pé perto da porta, com uma expressão preocupada no rosto.


“O tratamento que os senhores receberam agora há pouco”, disse ele, “eu estremeço de vergonha só de pensar.”


“Por favor, não vamos mais pensar nisso, senhor”, disse Axl. “O senhor foi mais generoso conosco do que merecemos. E nós chegamos esta noite a tempo de ver aqueles homens valentes partirem em tão perigosa missão. Então entendemos muito bem o pânico que paira no ar, e não é de espantar que alguns se comportem de modo insensato.”


“Se os senhores, que não são daqui, lembram dos nossos problemas, como é possível que aqueles idiotas já estejam esquecendo? Eles foram instruídos, com palavras que até uma criança entenderia, a manter suas posições na cerca a todo custo, uma vez que a segurança da comunidade inteira dependia disso, para não falar na necessidade de ajudar os nossos heróis caso eles chegassem aos portões perseguidos por monstros. E o que eles fazem? Dois estranhos passam e, esquecendo por completo das ordens que receberam e até mesmo das razões pelas quais as ordens foram dadas, partem para cima dos senhores feito lobos ensandecidos. Eu desconfiaria da minha própria sanidade se esses estranhos esquecimentos não acontecessem com tanta frequência por aqui.”


“Está acontecendo a mesma coisa na nossa aldeia, senhor”, disse Axl. “Minha esposa e eu já testemunhamos muitos esquecimentos desse tipo entre os nossos próprios vizinhos.”


“Que interessante o que o senhor está me dizendo. Eu temia que essa praga estivesse se espalhando só pela nossa terra. E será que é pelo fato de eu ser velho ou por ser um bretão vivendo aqui entre saxões que muitas vezes sou o único a lembrar das coisas enquanto todos ao meu redor se esquecem?”


“Conosco acontece o mesmo, senhor. Apesar de sermos bastante atingidos pela névoa — pois foi assim que eu e a minha mulher passamos a nos referir a esse mal —, aparentemente somos menos afetados do que os mais jovens. O senhor consegue imaginar alguma explicação para isso?”


“Já ouvi muitas coisas a esse respeito, amigo, a maioria delas superstições saxãs. Mas, no inverno passado, um estranho que passou por aqui disse uma coisa sobre isso que tem me parecido mais plausível quanto mais eu penso nela… O que é isso agora?” Ivor, que havia permanecido perto da porta, com o cajado na mão, virou-se com uma agilidade surpreendente para alguém tão disforme. “Queiram me desculpar, amigos. Pode ser que os nossos bravos homens já tenham voltado. Por ora, é melhor que os senhores fiquem aqui dentro e não se mostrem.”


Quando Ivor saiu, Axl e Beatrice permaneceram em silêncio durante algum tempo, de olhos fechados, gratos, em suas respectivas cadeiras, pela chance de descansar. Então Beatrice disse em voz baixa:


“O que você acha que o Ivor ia dizer naquela hora, Axl?”


“Quando, princesa?”


“Quando ele estava falando da névoa e da razão de ser dela.”


“Foi só um rumor que ele ouviu uma vez. Mas vamos pedir que ele fale mais sobre isso, sim. É um homem admirável. Ele sempre viveu com os saxões?”


“Pelo que me disseram, ele vive desde que se casou com uma saxã, muito tempo atrás. Eu nunca soube o que foi feito dela. Axl, não seria bom saber a causa da névoa?”


“Seria muito bom, de fato, mas de que isso adiantaria, eu não sei.”


“Como é que você pode dizer isso, Axl? Como você pode dizer uma coisa tão cruel?”


“O que foi, princesa? Qual é o problema?”, perguntou Axl, se desencostando da cadeira para olhar para a esposa. “Eu só quis dizer que conhecer a causa não iria fazer a névoa desaparecer, nem aqui nem na nossa terra.”


“Se houver alguma chance de entender a névoa, isso pode fazer uma diferença enorme para nós. Como é que você pode fazer tão pouco-caso disso, Axl?”


“Desculpe, princesa, eu não pretendia fazer pouco-caso. É que eu estava com outras coisas na cabeça.”


“Em que outras coisas você pode estar pensando, quando hoje mesmo nós ouvimos aquele barqueiro dizer aquilo?”


“Outras coisas, princesa… Por exemplo, se aqueles homens valentes regressaram de fato e conseguiram trazer o menino de volta ileso. Ou se esta aldeia, com seus guardas apavorados e aquele portão frágil, vai ser invadida esta noite por demônios monstruosos querendo vingança por causa do tratamento grosseiro que receberam. Tem muitas outras coisas que podem ocupar os pensamentos de uma pessoa, além da névoa e da conversa supersticiosa de barqueiros desconhecidos.”


“Não precisa ser ríspido, Axl. Eu não estava querendo puxar briga.”


“Desculpe, princesa. Deve ser a atmosfera tensa daqui que está me afetando.”


Mas Beatrice tinha ficado amuada. “Não há necessidade de falar de maneira tão ríspida”, ela resmungou, quase como se estivesse falando consigo mesma.


Levantando-se, Axl foi até a cadeira de balanço, se agachou um pouco e segurou Beatrice junto ao seu peito. “Desculpe, princesa”, disse ele. “Vamos conversar com o Ivor sobre a névoa sem falta antes de irmos embora daqui.” Depois de alguns instantes, durante os quais os dois continuaram abraçados, Axl disse: “Para ser franco, tinha uma coisa específica ocupando os meus pensamentos agora há pouco”.


“O que era, Axl?”


“Eu estava me perguntando o que a mulher dos remédios teria dito a você sobre sua dor.”


“Ela disse que não era nada além do que já era mesmo de esperar com a idade.”


“Exatamente o que eu vinha dizendo o tempo todo, princesa. Eu não disse a você que não havia motivo para se preocupar?”


“Não era eu que estava preocupada, marido. Foi você quem insistiu que fôssemos até a mulher dos remédios hoje.”


“E foi bom nós termos ido, pois assim não precisamos mais nos preocupar com a sua dor, se é que chegamos a ficar preocupados.”


Ela se desvencilhou delicadamente do abraço dele e deixou que a cadeira de balanço se inclinasse para trás com suavidade. “Axl”, disse ela. “A mulher dos remédios mencionou um velho monge que ela diz que é muito sábio, mais sábio até do que ela. Ele já ajudou muitas pessoas desta aldeia. Chama-se Jonus. O mosteiro onde ele mora fica a um dia de viagem daqui, subindo a estrada da montanha a leste.”


“A estrada da montanha a leste.” Axl foi andando até a porta, que Ivor tinha deixado entreaberta, e olhou para a escuridão lá fora. “Eu estou pensando, princesa, que amanhã poderíamos tranquilamente pegar a estrada mais alta, em vez da estrada baixa que atravessa a floresta.”


“É uma estrada difícil, Axl. Tem muita ladeira. Vai acrescentar no mínimo um dia à viagem, e nosso filho está ansioso à nossa espera.”


“Isso tudo é verdade, mas seria uma pena, já tendo chegado até aqui, não irmos ver esse monge sábio.”


“A mulher dos remédios só disse isso porque estava achando que íamos seguir viagem por aquele caminho. Quando eu disse a ela que era mais fácil chegar à aldeia do nosso filho pela estrada baixa, ela mesma concordou que não valeria muito a pena então, já que não há nada me incomodando a não ser as dores que costumam mesmo aparecer com a idade.”


Axl continuou olhando para a escuridão pelo vão da porta. “Mesmo assim, princesa, ainda podemos pensar sobre isso. Mas agora o Ivor vem vindo ali e não está parecendo contente.”


Ivor entrou pisando forte e respirando forte. Sentando-se numa cadeira larga coberta de peles, deixou seu cajado cair com estrépito no chão, perto de seus pés. “O idiota de um rapaz jurou que tinha visto um demônio escalar o lado de fora da nossa cerca e disse que o monstro ainda estava lá, nos espiando por cima da cerca. Foi um rebuliço tremendo, como vocês podem imaginar, e eu não tive outro jeito senão convocar um grupo para ir até lá ver se era verdade. Claro que não havia nada no lugar para onde ele estava apontando a não ser o céu noturno, mas ele continuou dizendo que o demônio estava lá olhando para nós, e aí os outros ficaram se escondendo atrás de mim feito crianças, com as suas enxadas e lanças. Por fim, o idiota acabou confessando que pegou no sono enquanto estava de guarda e que viu o demônio num sonho. Depois disso, eles obviamente voltaram correndo para os seus postos, certo? Errado! Eles estavam tão apavorados que tive que jurar que, se eles não fossem, eu ia cobri-los de pancada até que os próprios parentes deles os confundissem com pedaços de carne.” Ele olhou ao redor, ainda respirando ruidosamente. “Desculpem este seu anfitrião, amigos. Eu vou dormir naquele quarto ali, se é que vou conseguir dormir esta noite. Então, façam o que puderem para encontrar conforto aqui, embora haja pouco à disposição.”


“Pelo contrário, senhor”, disse Axl. “O senhor está nos oferecendo acomodações extremamente confortáveis e nós lhe agradecemos por isso. Lamento que não tenham sido notícias melhores que o chamaram lá fora há pouco.”


“Ainda vamos precisar esperar para ter notícias, talvez a noite inteira e pela manhã adentro também. Para onde os senhores estão indo, amigos?”


“Vamos seguir para o leste amanhã, senhor, rumo à aldeia do nosso filho, que nos espera ansioso. Mas talvez o senhor possa nos ajudar a esse respeito, pois a minha mulher e eu estávamos agora mesmo discutindo qual seria a melhor estrada a tomar. Nós soubemos que um sábio monge chamado Jonus mora num mosteiro situado na estrada que sobe a montanha e estávamos pensando em consultá-lo acerca de um pequeno problema.”


“Jonus sem dúvida é um nome muito reverenciado, embora eu nunca tenha visto o homem frente a frente. Vão consultá-lo sim, mas fiquem avisados de que a viagem até o mosteiro não é nada fácil. Os senhores vão enfrentar um caminho íngreme durante a maior parte do dia. E quando ele finalmente se tornar plano, os senhores terão que tomar muito cuidado para não se perder, pois estarão no território de Querig.”


“Querig, a dragoa? Faz tanto tempo que não ouço falar nela. Ainda é temida nesta região?”


“Hoje ela raramente sai das montanhas”, disse Ivor. “Embora seja capaz de atacar um viajante por impulso, é bem provável que ela muitas vezes leve a culpa por obras de animais selvagens ou bandidos. Para mim, a ameaça que Querig representa não vem de suas ações, mas sim de sua longa presença aqui. Enquanto ela permanecer em liberdade, todo tipo de mal vai continuar se alastrando pela nossa terra como uma praga, inevitavelmente. Vejam esses demônios que estão nos atormentando hoje. De onde vieram? Não são simples ogros. Ninguém aqui nunca viu nada parecido com eles antes. Por que vieram para cá, acampar na margem do nosso rio? Querig pode só aparecer raramente, mas muitas forças sombrias derivam dela e é uma desgraça que ela continue viva esses anos todos.”


“Mas, Ivor”, disse Beatrice, “quem iria querer desafiar uma fera dessas? Pelo que todos dizem, Querig é uma dragoa extremamente feroz e está escondida num terreno difícil.”


“Tem razão, sra. Beatrice, é uma tarefa aterrorizante. Na verdade, há um velho cavalheiro, remanescente dos tempos de Arthur, que foi encarregado por aquele grande rei, muitos anos atrás, de matar Querig. Talvez os senhores cruzem com ele, se forem pela estrada da montanha. É difícil não vê-lo, vestido com uma cota de malha enferrujada e montado num corcel combalido, sempre ansioso para declarar sua missão sagrada, embora eu duvide que o velho tonto tenha causado um instante sequer de tensão àquela dragoa. Vamos ficar velhos decrépitos esperando o dia em que ele cumpra o seu dever. Vão até o mosteiro, sim, amigos, mas vão com cautela e façam todo o possível para chegar a um abrigo seguro até o anoitecer.”


Ivor começou a andar em direção ao quarto, mas Beatrice rapidamente se desencostou da cadeira e disse:


“O senhor estava falando da névoa, Ivor, de ter ouvido alguma coisa a respeito de sua causa, mas foi chamado lá fora antes de concluir o que estava dizendo. Gostaríamos muito de ouvir o que o senhor tem a dizer sobre esse assunto.”


“Ah, a névoa. É um bom nome para isso. Quem sabe o que há de verdadeiro no que nós ouvimos dizer, sra. Beatrice? Imagino que eu estivesse falando do estranho que passou pela nossa aldeia ano passado e se hospedou aqui. Ele era da região dos pântanos, como o nosso valente visitante desta noite, embora falasse um dialeto muitas vezes difícil de entender. Ofereci a ele o abrigo desta casa, como fiz com os senhores, e nós conversamos sobre muitos assuntos ao longo da noite, inclusive sobre a névoa, como os senhores tão adequadamente a chamam. A nossa estranha mazela o deixou muito interessado e o homem me fez várias perguntas sobre o assunto. Depois, ele disse uma coisa que descartei na hora, mas sobre a qual tenho refletido muito desde então. O estranho sugeriu que talvez o próprio Deus tenha esquecido boa parte do nosso passado, acontecimentos muito longínquos, acontecimentos do mesmo dia. E se uma coisa não está na mente de Deus, qual é a chance de ela permanecer na de homens mortais?”


Beatrice arregalou os olhos para ele. “O senhor acha isso possível, Ivor? Todos somos seus filhos queridos. Será que Deus iria esquecer o que nós fizemos e o que aconteceu conosco?”


“Foi exatamente a pergunta que eu fiz, sra. Beatrice, e o estranho não tinha nenhuma resposta a oferecer. Mas, desde aquele dia, tenho me pegado pensando cada vez mais nas palavras dele. Talvez seja uma explicação tão boa quanto qualquer outra para o que os senhores chamam de névoa. Agora os amigos me perdoem, mas preciso descansar um pouco enquanto posso.”


Axl se deu conta de que Beatrice estava sacudindo seu ombro. Ele não tinha a menor ideia de quanto tempo eles haviam dormido: ainda estava escuro, mas havia ruídos lá fora, e ele ouviu Ivor dizer em algum lugar acima dele: “Vamos rezar para que sejam boas notícias, e não o nosso fim”. Quando Axl se sentou, porém, o anfitrião já havia saído, e Beatrice disse: “Depressa, Axl, vamos ver se as notícias são boas ou ruins”.


Tonto de sono, ele enroscou o braço no da esposa e, juntos, eles saíram cambaleantes noite afora. Havia muito mais tochas acesas agora, algumas flamejando do alto da barreira, o que tornava bem mais fácil enxergar o caminho que se seguia. Pessoas se deslocavam de um lado para o outro, cachorros latiam e crianças choravam. Então, certa ordem pareceu se impor, e Axl e Beatrice se viram no meio de uma procissão, que seguia apressada num único sentido. Eles estacaram de repente, e Axl ficou surpreso ao ver que já estavam na praça central — obviamente, havia um caminho mais curto da casa de Ivor até a praça do que o que eles haviam feito antes. A fogueira ardia com mais intensidade do que nunca, tanto que Axl por um instante pensou que tinha sido o calor do fogo que fizera os aldeões pararem. No entanto, olhando além das fileiras de cabeças, ele viu que o guerreiro havia voltado. Bastante calmo, o homem estava parado à esquerda do fogo, com um lado do corpo iluminado e o outro na sombra. A parte visível do seu rosto estava coberta do que Axl reconheceu como minúsculos pingos de sangue, como se ele tivesse acabado de atravessar uma névoa fina desse líquido. Seu cabelo comprido, embora ainda estivesse preso, tinha mechas soltas e parecia molhado. Suas roupas estavam cobertas de lama e talvez também de sangue, e o manto que ele jogara com displicência sobre o ombro ao partir estava agora rasgado em vários lugares. Mas o homem em si parecia ileso e agora conversava em voz baixa com três dos anciãos da aldeia, sendo um deles Ivor. Axl percebeu também que o guerreiro estava segurando algum objeto na dobra do braço.


Enquanto isso, os aldeões haviam começado a aclamar o guerreiro entoando palavras em coro, suavemente a princípio, depois com veemência cada vez maior, até que por fim ele se virou para a multidão em reconhecimento. A conduta dele era destituída de qualquer sinal patente de vanglória. E quando ele começou a se dirigir à multidão, sua voz, embora alta o bastante para que todos ouvissem, dava de alguma forma a impressão de que ele estava falando num tom baixo e íntimo, adequado ao assunto solene.


Seus ouvintes fizeram silêncio para captar cada palavra, e logo o guerreiro já estava extraindo deles murmúrios de aprovação ou arquejos de horror. Num determinado momento, ele fez um gesto para um lugar atrás de si, onde Axl notou pela primeira vez, sentados no chão bem na beira do círculo da claridade do fogo, os dois homens que haviam partido com o guerreiro. Eles pareciam ter caído ali de uma grande altura e estar atordoados demais para se levantar. A multidão começou a aclamá-los, mas os dois não pareceram notar, pois continuaram olhando fixamente para um ponto à frente.


O guerreiro, então, virou-se de novo para a multidão e disse alguma coisa que fez com que os brados de aclamação se extinguissem. Aproximou-se do fogo e, pegando com uma das mãos o objeto que segurava na dobra do braço, levantou-o no ar.


Axl viu o que parecia ser a cabeça de uma criatura presa a um pescoço grosso, cortado logo abaixo da garganta. Caracóis de cabelo escuro pendiam do cocuruto, emoldurando um rosto sinistramente desprovido de feições: onde os olhos, o nariz e a boca deveriam estar, havia apenas faixas de pele encaroçada, como a de um ganso, e nas bochechas, alguns tufos de penugem. A multidão deixou escapar um grunhido, e Axl a sentiu recuar de medo. Só então foi que ele se deu conta de que o que eles estavam vendo não era uma cabeça de forma alguma, mas sim uma parte do ombro e do braço de alguma criatura semelhante a um ser humano, mas muito maior que uma pessoa normal. O guerreiro, na verdade, estava segurando o seu troféu pelo coto, perto dos bíceps, com a ponta do ombro para cima, e naquele momento Axl viu que o que ele tinha confundido com mechas de cabelo eram entranhas pendendo do corte que separara aquele segmento do resto do corpo.


Pouco depois, o guerreiro baixou seu troféu e o deixou cair perto de seus pés, como se agora mal conseguisse sentir o devido desprezo pelos restos mortais da criatura. Pela segunda vez, a multidão recuou, para logo depois avançar e começar novamente a entoar palavras em coro. Dessa vez, porém, o coro se extinguiu quase que de imediato, pois o guerreiro começou a falar de novo. Embora não conseguisse entender uma palavra, Axl sentia de modo palpável a agitação nervosa a seu redor. Beatrice disse no ouvido dele:


“Nosso herói matou os dois monstros. Um deles fugiu para a floresta com uma ferida letal e não vai sobreviver até o fim da noite. O outro resistiu e lutou e, pelos pecados que cometeu, o guerreiro trouxe aquele pedaço dele que você vê ali no chão. O resto do corpo do monstro se arrastou até o lago para anestesiar a dor e lá afundou nas águas negras. O menino, Axl, você está vendo o menino ali?”


Quase fora da claridade do fogo, um pequeno grupo de mulheres tinha se juntado em volta de um rapazinho magro, de cabelo escuro. Ele já tinha quase a altura de um homem adulto, mas percebia-se que, debaixo do cobertor em que agora estava enrolado, ele ainda tinha o corpo franzino de um menino. Uma mulher havia trazido um balde e estava limpando a sujeira agarrada à pele do rosto e do pescoço do garoto, mas ele parecia alheio. Seus olhos estavam fixos nas costas do guerreiro à sua frente, embora de vez em quando ele inclinasse a cabeça para o lado, como se estivesse tentando espiar por entre as pernas do guerreiro para ver o pedaço de corpo caído no chão.


Axl ficou surpreso quando percebeu que ver o menino resgatado ali, vivo e obviamente sem nenhum ferimento grave, não lhe trouxe nem alívio nem alegria, mas sim uma vaga inquietação. Supôs a princípio que isso estivesse relacionado com o comportamento estranho do próprio menino, mas depois se deu conta do que estava errado, na verdade: havia algo esquisito no modo como aquele menino, cuja segurança era a principal preocupação da comunidade até pouco tempo atrás, estava sendo recebido agora. O tratamento distante, quase frio, dado ao rapaz fez Axl se lembrar do incidente envolvendo a menina Marta, que acontecera em sua própria aldeia, e ele se perguntava se o menino, assim como Marta, estaria sendo esquecido. Mas por certo não poderia ser esse o caso ali, pois ainda agora havia gente apontando para ele, e as mulheres que estavam à sua volta encaravam a multidão como se estivessem na defensiva.


“Eu não estou conseguindo entender o que eles estão dizendo, Axl”, Beatrice falou no ouvido dele. “Há alguma desavença a respeito do menino, embora seja uma grande bênção ele ter sido trazido de volta são e salvo e ele próprio demonstre uma calma surpreendente depois do que seus jovens olhos viram.”


O guerreiro ainda estava se dirigindo à multidão, e a voz dele tinha adquirido um tom de apelo. Era quase como se ele estivesse fazendo uma acusação, e Axl sentiu que o ânimo da multidão estava mudando. O sentimento de reverência e gratidão estava cedendo lugar a alguma outra emoção, e havia incerteza e até medo no burburinho que se avolumava ao redor de Axl. O guerreiro falou de novo, com voz severa, apontando para trás, na direção do menino. Então Ivor se aproximou da claridade do fogo e, parando ao lado do guerreiro, disse algo que arrancou urros de protesto menos inibidos de partes da plateia. Uma pessoa atrás de Axl gritou alguma coisa, e então começaram a brotar discussões de todos os lados. Ivor elevou a voz e por um breve momento houve silêncio, mas logo depois a gritaria recomeçou, agora acompanhada de um empurra-empurra nas sombras.


“Ah, Axl, por favor, vamos embora correndo!”, Beatrice pediu em seu ouvido. “Aqui não é lugar para nós.”


Axl pôs o braço em torno dos ombros dela e começou a abrir caminho por entre a multidão, mas alguma coisa o fez olhar para trás mais uma vez. O menino não havia mudado de posição e continuava com o olhar fixo nas costas do guerreiro, aparentemente alheio ao tumulto à sua frente. A mulher que vinha cuidando dele, porém, havia dado alguns passos para a frente e olhava com incerteza ora para o menino, ora para a multidão. Beatrice puxou o braço dele. “Por favor, Axl, nos tire daqui. Estou com medo de que nos machuquem.”


A população inteira da aldeia devia estar na praça, pois eles não encontraram ninguém no caminho de volta para a casa de Ivor. Só quando avistaram a moradia foi que Axl perguntou: “O que eles estavam dizendo quando nós saímos de lá, princesa?”.


“Eu não sei direito, Axl. Era muita coisa ao mesmo tempo para o meu parco entendimento. Eles estavam discutindo alguma coisa sobre o menino que foi salvo, e os ânimos se exaltaram. Ainda bem que saímos de lá. Depois nós procuramos saber o que aconteceu.”


Quando Axl acordou na manhã seguinte, raios de sol atravessavam o quarto. Ele estava no chão, mas tinha dormido numa cama de tapetes macios e debaixo de cobertas quentes — uma acomodação mais suntuosa do que aquela à qual ele estava acostumado — e seu corpo estava bem descansado. Além disso, ele estava de bom humor, pois acordara com uma lembrança agradável vagando pela sua cabeça.


Beatrice se remexeu ao lado dele, mas seus olhos continuaram fechados e sua respiração, constante. Axl ficou observando-a, como fazia com frequência nessas horas, esperando que uma suave sensação de alegria lhe invadisse o peito. Isso logo aconteceu, exatamente como ele esperava, mas hoje a sensação estava misturada com um pouco de tristeza. Esse sentimento o surpreendeu, e Axl passou a mão de leve pelos ombros da esposa, como se aquele gesto pudesse afugentar a tristeza.


Ele ouvia ruídos lá fora, mas, diferente dos barulhos que os tinham acordado no meio da noite, aqueles eram ruídos normais, de pessoas cuidando de seus afazeres numa manhã normal. Ocorreu a Axl que ele e Beatrice tinham dormido até mais tarde do que seria prudente, mas mesmo assim ele hesitava em acordar a esposa e continuou a observá-la. Passado um tempo, ele se levantou com cuidado, foi andando até a porta de madeira e a abriu um pouco. Essa porta — uma porta “de verdade”, com dobradiças de madeira — fez um rangido, e o sol entrou com força pela fresta, mas mesmo assim Beatrice continuou dormindo. Um pouco preocupado agora, Axl voltou para onde ela estava e se agachou ao seu lado, sentindo uma rigidez nos joelhos ao fazer isso. Por fim, Beatrice abriu os olhos e levantou a cabeça para olhar para ele.


“Está na hora de levantar, princesa”, disse ele, escondendo o alívio que estava sentindo. “A aldeia já está de pé, e o nosso anfitrião já saiu faz tempo.”


“Então você devia ter me acordado mais cedo, Axl.”


“É que você parecia tão tranquila. E depois de um dia longo como o de ontem, eu achei que dormir mais um pouquinho te faria bem. E eu estava certo, porque agora você está parecendo tão cheia de vida quanto uma jovem noiva.”


“Você já começou com as suas tolices e nós ainda nem sabemos o que aconteceu à noite. Pelos sons que estão vindo lá de fora, parece que eles não se espancaram até virar pedaços sangrentos de carne. Estou ouvindo vozes de crianças e latidos de cachorros alegres e bem alimentados. Tem água aqui para nos lavarmos, Axl?”


Um pouco mais tarde, depois de se arrumarem da melhor forma que puderam — e como Ivor ainda não tinha voltado —, eles saíram para o ar fresco e revigorante da manhã luminosa em busca de alguma coisa para comer. A aldeia agora pareceu a Axl um lugar muito mais acolhedor. As choupanas redondas, que no escuro davam a impressão de estar posicionadas de modo tão caótico, agora surgiam diante deles em fileiras bem organizadas, suas sombras idênticas formando uma ordeira avenida no meio da aldeia. Homens e mulheres andavam apressados de um lado para o outro, carregando ferramentas ou bacias de lavar roupa e seguidos por grupos de crianças. Os cachorros, embora numerosos como sempre, pareciam dóceis. A única coisa que lembrava a Axl o lugar anárquico que ele adentrara na noite anterior era um asno que defecava tranquilamente ao sol, bem na frente de um poço. Alguns aldeões haviam até inclinado a cabeça ou sussurrado saudações ao passar por eles, embora nenhum tenha ido tão longe a ponto de lhes dirigir a palavra.


Eles ainda não haviam andado muito quando avistaram as figuras contrastantes de Ivor e do guerreiro postadas diante deles na rua, suas cabeças próximas uma da outra enquanto conversavam. Quando Axl e Beatrice se aproximaram, Ivor deu um passo para trás e um sorriso constrangido.


“Eu não quis acordá-los antes da hora”, disse ele. “Mas sou péssimo anfitrião e os senhores devem estar famintos. Venham comigo até a velha casa comunitária que eu providencio para que lhes sirvam uma boa refeição. Mas antes, amigos, permitam que eu lhes apresente o nosso herói de ontem à noite. Os senhores verão que o sr. Wistan entende a nossa língua sem dificuldade.”


Axl se virou para o guerreiro e inclinou a cabeça. “Eu e minha esposa ficamos honrados em conhecer um homem de tanta coragem, generosidade e habilidade. Os seus feitos de ontem à noite foram notáveis.”


“Os meus feitos não foram nada de extraordinário, senhor, como as minhas habilidades também não são”, o guerreiro falou com voz suave, como antes, e com um esboço de sorriso no olhar. “Eu tive sorte ontem à noite e também a valiosa ajuda dos meus valentes companheiros.”


“Os companheiros de que ele fala”, disse Ivor, “estavam ocupados demais se borrando para participar da batalha. Foi esse homem sozinho quem destruiu os demônios.”


“Por favor, senhor, vamos esquecer esse assunto.” O guerreiro tinha se dirigido a Ivor, mas agora estava olhando fixamente para Axl, como se algum traço no rosto do velho o fascinasse.


“O senhor fala a nossa língua muito bem”, disse Axl, um pouco constrangido com o escrutínio.


O guerreiro continuou examinando Axl, depois parou e riu. “Eu peço desculpas, senhor. Por um momento pensei que… Mas me desculpe. O meu sangue é todo saxão, porém fui criado numa região não muito distante daqui e convivi bastante com bretões. Então, aprendi a sua língua ao mesmo tempo em que aprendi a minha. Hoje já não estou mais tão acostumado com ela, pois moro longe, lá na região dos pântanos, onde se ouve muitas línguas estranhas, mas não a sua. Então, o senhor terá que desculpar os meus erros.”


“Longe disso, senhor”, disse Axl. “Mal se nota que o senhor não é um falante nativo. Na verdade, não pude deixar de notar ontem à noite a maneira como o senhor carrega sua espada: mais próxima da cintura e mais alta do que os saxões costumam carregar, a mão pousando com facilidade no punho quando o senhor anda. Espero que não se ofenda com o que eu vou dizer, mas é uma maneira muito parecida com a dos bretões.”


Novamente Wistan riu. “Os meus companheiros saxões vivem zombando não só da maneira como carrego a espada, mas também do modo como a manejo. Mas, sabe, as habilidades que tenho me foram ensinadas por bretões, e eu não poderia ter desejado melhores mestres. O que eles me ensinaram já me livrou de muitos perigos e me salvou de novo ontem à noite. Perdoe a minha impertinência, mas eu noto que o senhor também não é daqui desta região. Por acaso a sua terra natal fica a oeste?”


“Nós somos da região vizinha, senhor. A um dia de caminhada daqui, no máximo.”


“Mas muitos anos atrás talvez o senhor tenha vivido mais para oeste, não?”


“Como eu disse, senhor, eu sou da região vizinha.”


“Perdoe-me pelos meus maus modos, senhor. É que, tendo viajado até este ponto tão a oeste, estou sentindo uma grande nostalgia da terra da minha infância, embora saiba que ela ainda está um pouco distante, e me pego vendo em toda parte vestígios de rostos dos quais só guardo vagas lembranças. O senhor e sua boa esposa vão voltar para casa esta manhã?”


“Não, senhor, nós estamos indo para leste, rumo à aldeia de nosso filho, onde esperamos chegar daqui a dois dias.”


“Ah, vocês vão pegar a estrada que atravessa a floresta, então.”


“Na verdade, senhor, pretendemos pegar a estrada alta que sobe as montanhas, pois há um homem sábio no mosteiro lá localizado e esperamos que ele nos conceda uma audiência.”


“É mesmo?” Wistan assentiu, pensativo, e mais uma vez ficou olhando atentamente para Axl. “Pelo que me disseram, essa estrada é bastante íngreme.”


“Meus hóspedes ainda estão de barriga vazia”, disse Ivor, intrometendo-se. “Com sua licença, sr. Wistan, agora vou levá-los até a casa comunitária. Depois, se o senhor me permitir, eu gostaria de retomar a conversa que estávamos tendo ainda há pouco.” Ele diminuiu a voz e disse alguma coisa em saxão, ao que Wistan respondeu fazendo que sim com a cabeça. Em seguida, virando-se para Axl e Beatrice, Ivor balançou a cabeça e disse com ar grave: “Apesar dos grandes esforços deste homem ontem à noite, nossos problemas ainda estão longe de estar resolvidos. Mas venham comigo, amigos. Os senhores devem estar famintos”.


Ivor saiu andando do seu jeito claudicante, fincando seu cajado na terra a cada passo. Parecia distraído demais para notar que seus hóspedes estavam ficando para trás nas vielas apinhadas de gente. Num determinado momento, quando Ivor estava vários passos à frente deles, Axl comentou com Beatrice: “Aquele guerreiro é um homem admirável, você não achou, princesa?”.


“Sem dúvida”, ela respondeu de um jeito contido. “Mas era estranho aquele jeito como ele ficava olhando para você, Axl.”


Não houve tempo para dizer mais nada, pois Ivor, notando finalmente que corria o risco de perdê-los pelo caminho, havia parado numa esquina.


Pouco depois, eles chegaram a um pátio ensolarado. Gansos zanzavam pelo terreno, que era dividido por um riacho artificial — um canal raso escavado na terra, ao longo do qual um curso de água fluía com urgência. No trecho mais largo e raso do riacho havia uma pontezinha simples, feita de duas pedras planas, e naquele momento uma criança crescida estava agachada numa das pedras, lavando roupa. Axl achou aquela cena quase idílica e teria parado para contemplá-la se Ivor não continuasse a avançar com passadas largas e firmes em direção à casa baixa e comprida, encimada por um volumoso telhado de colmo e cujo comprimento ocupava toda a extensão dos fundos do pátio.


No interior dela, você não teria achado aquela casa comunitária muito diferente do tipo de refeitório rústico que você já pode ter frequentado em uma ou outra instituição. Havia fileiras de mesas e bancos compridos e, perto de um dos cantos, uma cozinha e uma área para as pessoas se servirem. A principal diferença daquele lugar para um refeitório moderno teria sido a presença dominante do feno: havia feno acima da cabeça das pessoas, feno debaixo de seus pés e, embora não fosse de propósito, feno espalhado por toda a superfície das mesas, soprado pelas rajadas de vento que varavam o longo salão regularmente. Numa manhã como aquela, quando os nossos viajantes se sentaram para fazer a primeira refeição do dia, os raios de sol que penetravam pelas janelinhas parecidas com vigias teriam revelado que o próprio ar estava cheio de partículas de feno flutuantes.


A velha casa comunitária estava deserta quando eles chegaram, mas Ivor foi até a área da cozinha e, instantes depois, duas senhoras idosas apareceram, trazendo pão, mel, biscoitos e jarras de leite e água. Em seguida, o próprio Ivor voltou com uma bandeja contendo pedaços de carne de ave, que Axl e Beatrice puseram-se a devorar com gratidão.


A princípio, os dois comeram sem dizer nada, só percebendo naquela hora o quanto estavam famintos. Ivor, sentado diante deles do outro lado da mesa, continuava mergulhado em seus pensamentos, o olhar distante, e foi só depois de algum tempo que Beatrice disse:


“Esses saxões são um grande fardo para o senhor, Ivor. Talvez o senhor sinta vontade de voltar para o seu povo, ainda que o menino já tenha regressado são e salvo e os ogros estejam mortos.”


“Aquilo não eram ogros, senhora, nem nenhuma criatura já vista por estes lados. É um enorme alívio saber que eles não rondam mais os nossos portões. Já o caso do menino é diferente: ele pode ter voltado, mas não está são e salvo.” Ivor se inclinou sobre a mesa na direção deles e diminuiu a voz, muito embora os três estivessem novamente sozinhos. “Mas tem razão, sra. Beatrice. Eu mesmo me surpreendo por ter decidido viver entre essa gente tão selvagem. Seria melhor morar num covil de ratos. O que aquele valente estranho não deve estar pensando de nós, depois de tudo que ele fez ontem à noite?”


“Mas por quê, senhor? O que foi que aconteceu?”, perguntou Axl. “Nós fomos até perto da fogueira ontem à noite, mas nos retiramos quando sentimos que os ânimos estavam ficando exaltados e não sabemos o que houve.”


“Os senhores fizeram bem em se esconder, amigos. Esses pagãos ontem à noite ficaram ensandecidos o bastante para arrancar os olhos uns dos outros. Tenho até medo de pensar no que eles poderiam ter feito se tivessem encontrado um par de bretões desconhecidos no meio deles. O menino Edwin voltou para casa a salvo, mas, quando a aldeia ainda estava só começando a comemorar, as mulheres encontraram um pequeno ferimento nele. Eu mesmo examinei o ferimento, assim como os outros anciãos. Era um machucado logo abaixo do peito, em nada mais grave do que qualquer outro machucado que as crianças fazem quando levam tombos. Mas as mulheres, que aliás eram parentes do menino, declararam que aquilo era uma mordida, e é assim que a aldeia inteira está chamando o ferimento esta manhã. Eu precisei mandar que trancassem o menino dentro de um barracão para a sua segurança, e mesmo assim companheiros e até membros da própria família do garoto ficaram atirando pedras na porta e bradando que ele tinha que ser trazido para fora e liquidado.”


“Mas como isso é possível, Ivor?”, Beatrice perguntou. “Será que foi a névoa de novo que os fez esquecer por completo os horrores pelos quais essa criança acabou de passar?”


“Quem dera tivesse sido, senhora. Mas desta vez eles parecem se lembrar de tudo muito bem. Os pagãos não conseguem enxergar além das superstições em que acreditam. Estão convictos de que, como foi mordido por um demônio, o menino em breve vai se transformar num demônio também e instaurar o horror aqui no interior dos nossos muros. Eles estão com muito medo do menino e, se permanecer aqui, ele vai ter um fim tão terrível quanto aquele do qual o sr. Wistan o salvou ontem à noite.”


“Mas com certeza, senhor, existem pessoas inteligentes o bastante aqui para se opor a essa insensatez”, disse Axl.


“Se existem, estão em minoria. E mesmo se nós conseguíssemos impor a ordem durante um dia ou dois, não demoraria muito para que os ignorantes acabassem conseguindo fazer o que querem.”


“Então, qual é a solução, senhor?”


“O guerreiro está tão horrorizado quanto os senhores, e nós dois passamos a manhã inteira discutindo o que fazer. Embora saiba que estou pedindo demais, eu propus que ele leve o menino quando for embora daqui e o deixe em alguma aldeia suficientemente distante, onde Edwin tenha a chance de construir uma vida nova. Eu fiquei profundamente envergonhado de pedir uma coisa dessas a um homem que acabou de arriscar a própria vida por nós, mas não consegui encontrar uma alternativa. Wistan agora está considerando minha proposta, embora tenha uma missão a cumprir para o rei dele e já esteja atrasado por conta do cavalo que se machucou e dos problemas de ontem à noite. Na verdade, eu preciso ir agora mesmo conferir se o menino ainda está seguro e depois perguntar se o guerreiro já tomou uma decisão.” Ivor se levantou e pegou seu cajado. “Não se esqueçam de se despedir antes de partir, amigos. Muito embora, depois do que os senhores ouviram, eu consiga entender perfeitamente se os senhores quiserem sair correndo daqui sem nem olhar para trás.”


Axl ficou observando pelo vão da porta Ivor se afastar, atravessando com passadas largas e decididas o pátio ensolarado. “Notícias desoladoras, princesa”, disse ele.


“São sim, Axl, mas elas nada têm a ver conosco. Vamos embora daqui assim que possível. Temos um caminho íngreme pela frente hoje.”


A comida e o leite estavam muito frescos, e eles continuaram comendo em silêncio durante algum tempo. Então Beatrice disse:


“Você acha possível que seja verdade aquilo que o Ivor disse sobre a névoa ontem à noite, Axl? Que é Deus que está nos fazendo esquecer?”


“Eu não sei o que pensar disso, princesa.”


“Axl, uma ideia a esse respeito me veio à cabeça hoje de manhã, bem quando eu estava acordando.”


“Que ideia, princesa?”


“Foi só uma ideia, mas me ocorreu que talvez Deus esteja zangado com alguma coisa que nós fizemos. Ou talvez não zangado, mas envergonhado.”


“É uma ideia curiosa, princesa. Mas, se é assim, por que ele não nos castiga? Por que nos fazer esquecer como parvos até coisas que aconteceram uma hora atrás?”


“Talvez Deus esteja sentindo uma vergonha tão profunda de nós, de algo que fizemos, que ele próprio esteja querendo esquecer. E como o estranho disse ao Ivor: se Deus não lembra, não é de espantar que nós não consigamos lembrar.”


“Mas o que nós podemos ter feito para deixar Deus tão envergonhado?”


“Não sei, Axl. Mas com certeza não foi nada que eu e você tenhamos feito, pois ele sempre nos amou. Se rezarmos para ele, rezarmos e pedirmos que ele se lembre de pelo menos algumas das coisas mais preciosas para nós, quem sabe ele nos escuta e realiza o nosso desejo?”


Lá de fora, veio de repente um estouro de gargalhadas. Inclinando a cabeça, Axl viu no pátio externo um grupo de crianças se equilibrando nas pedras planas dispostas sobre o pequeno curso de água. Enquanto ele observava, uma das crianças caiu na água, soltando um gritinho estridente.


“Quem sabe, princesa”, disse ele. “Talvez o sábio monge que vive nas montanhas possa nos explicar. Mas, por falar em acordar, uma coisa também me veio à cabeça hoje de manhã, talvez na mesma hora em que você estava pensando nesse assunto. Foi uma reminiscência, uma lembrança bem simples, mas que me deixou bastante contente.”


“Ah, Axl! Que lembrança foi essa?”


“Eu me lembrei de uma vez em que nós estávamos andando por uma feira — ou talvez fosse uma quermesse. Nós estávamos numa aldeia, mas não era a nossa, e você usava aquele manto verde-claro com capuz.”


“Isso só pode ter sido um sonho ou então alguma coisa que aconteceu faz muito tempo, Axl, porque eu não tenho nenhum manto verde.”


“Eu estou falando de muito tempo atrás, sem dúvida, princesa. Era um dia de verão, porém soprava um ventinho frio nesse lugar onde nós estávamos, e você tinha posto o manto verde em torno dos ombros, mas não o capuz na cabeça. Era uma feira ou talvez alguma quermesse. E era uma aldeia numa colina, com um curral de bodes logo na entrada.”


“E o que nós estávamos fazendo lá, Axl?”


“Nós só estávamos andando de braços dados, e aí de repente apareceu um estranho, um homem da aldeia, no meio do nosso caminho. Assim que a viu, ele cravou os olhos em você como se estivesse contemplando uma deusa. Você se lembra disso, princesa? Era um homem jovem, embora eu suponha que nós também fôssemos jovens na época. Ele disse que nunca tinha posto os olhos numa mulher tão bonita, depois estendeu a mão e tocou no seu braço. Você tem alguma lembrança disso, princesa?”


“Acho que está me vindo alguma coisa à memória, mas não é uma lembrança clara. Esse homem de que você fala por acaso estava bêbado?”


“Um pouco embriagado talvez, não sei, princesa. Era um dia de festividades, como eu disse. De qualquer forma, ele viu você e ficou maravilhado. Disse que você era a coisa mais linda que ele já tinha visto na vida.”


“Então deve ter sido há muito tempo mesmo! Não foi esse o dia em que você ficou com ciúme, brigou com o homem e nós quase fomos escorraçados da aldeia?”


“Eu não me lembro de nada disso, princesa. No dia a que me refiro, você usava o manto verde, estava havendo algum festival, e esse mesmo estranho que mencionei, vendo que eu era seu protetor, virou-se para mim e disse: ‘Ela é a coisa mais linda que eu já vi. Então, trate de cuidar muito bem dela, meu amigo’. Foi o que ele disse.”


“Eu só me lembro vagamente, mas tenho certeza de que você brigou com o estranho depois, por ciúme.”


“Como eu poderia ter feito uma coisa dessas se até hoje sinto o meu peito se encher de orgulho quando me lembro do que o estranho disse? A coisa mais linda que ele já tinha visto na vida. E estava me recomendando que cuidasse muito bem de você.”


“Se sentiu orgulho, Axl, também sentiu ciúmes. Você não enfrentou o homem, apesar de ele estar bêbado?”


“Não é assim que eu me lembro desse dia, princesa. Talvez eu só tenha fingido que estava com ciúme, como uma espécie de brincadeira. Mas com certeza eu sabia que o sujeito não tinha falado por mal. Foi com essa lembrança que eu acordei hoje de manhã, muito embora isso tenha acontecido há muitos anos.”


“Se é assim que você se lembra, Axl, então vamos acreditar que tenha sido assim. Com essa névoa sobre nós, qualquer lembrança é preciosa, e o melhor que temos a fazer é nos agarrar a ela.”


“O que será que aconteceu com aquele manto? Você sempre cuidou tão bem dele.”


“Era um manto, Axl, e, como qualquer manto, deve ter ficado gasto com o tempo.”


“Nós não o perdemos em algum lugar? Ou o esquecemos em cima de uma pedra banhada de sol talvez?”


“Isso mesmo, agora estou me lembrando. E eu culpei você pela perda.”


“Eu acho que culpou sim, princesa, embora no momento eu não consiga imaginar por que a culpa teria sido minha.”


“Ah, Axl, é um alívio que nós ainda estejamos conseguindo nos lembrar de algumas coisas, com névoa ou sem névoa. Pode ser que Deus já tenha nos ouvido e esteja se apressando para nos ajudar a lembrar.”


“E ainda vamos recordar muito mais, princesa, quando nos concentrarmos nisso. E aí nenhum barqueiro astuto vai conseguir nos passar a perna, se é que algum dia nós daremos importância para conversas moles desse tipo. Mas vamos tratar de terminar de comer. O sol já está alto; e nós, atrasados para trilhar aquela estrada íngreme.”


Eles estavam andando de volta para a casa de Ivor e tinham acabado de passar pelo lugar onde quase haviam sido atacados na noite anterior, quando ouviram uma voz do alto os chamando. Olhando em volta, avistaram Wistan em cima da barreira, encarapitado numa plataforma de sentinela.


“Que bom que os senhores ainda estão aqui, amigos!”, o guerreiro gritou lá do alto.


“Ainda estamos aqui”, Axl gritou em resposta, dando alguns passos em direção à cerca. “Mas apressados para seguir nosso caminho. E o senhor? Vai passar o dia aqui para descansar?”


“Não, eu também preciso partir em breve. Mas se o senhor puder me conceder alguns instantes para uma breve conversa, eu ficaria muito grato. Prometo não tomar muito o seu tempo.”


Axl e Beatrice trocaram olhares e, em seguida, ela disse em voz baixa: “Converse com ele se quiser, Axl. Eu vou voltar para a casa de Ivor e preparar provisões para a nossa viagem”.


Axl fez que sim com a cabeça. Depois, virando-se para Wistan, gritou: “Está bem, então. O senhor quer que eu suba?”.


“Como quiser, senhor. Eu desço de bom grado, mas a manhã está esplêndida e a vista daqui é tão bonita que revigora o espírito. Se a escada de mão não for problema para o senhor, eu recomendo que se junte a mim aqui em cima.”


“Vá ver o que ele quer, Axl”, Beatrice disse baixinho. “Mas tenha cuidado, e não é só da escada que eu estou falando.”


Ele subiu os degraus cautelosamente até alcançar o guerreiro, que o esperava com a mão estendida. Axl se equilibrou na plataforma estreita, depois olhou lá para baixo, onde Beatrice o observava. Só depois que ele acenou alegremente para a esposa ela começou a caminhar com certa relutância rumo à casa de Ivor, casa esta que Axl agora avistava com clareza lá do alto. Ele continuou olhando para a esposa por mais algum tempo, depois se virou e contemplou a paisagem por cima do topo da cerca.


“O senhor vê que eu não menti”, disse Wistan, parado ao lado de Axl, enquanto o vento batia em seus rostos. “É absolutamente esplêndido até onde a vista alcança.”


A vista diante deles naquela manhã talvez não fosse tão diferente da que se tem hoje das janelas altas de uma casa de campo inglesa. Os dois homens teriam visto, à sua direita, a encosta do vale descendo em cumes verdes e regulares, enquanto bem à esquerda a vertente oposta, coberta de pinheiros, teria parecido mais enevoada, por ser mais distante, ao se fundir com os contornos das montanhas no horizonte. Bem à frente deles abria-se uma vista desimpedida de todo o fundo do vale; do rio dobrando uma curva suave enquanto seguia o desfiladeiro até sumir de vista; das extensões de terreno pantanoso interrompidas por lagos mais ao longe. Haveria olmos e salgueiros perto da água, assim como uma floresta densa, que naquela época teria transmitido uma sensação de mau agouro. E, no lado esquerdo do rio, justo onde a luz do sol dava lugar à sombra, teria sido possível avistar vestígios de uma aldeia abandonada havia muito tempo.


“Ontem eu cavalguei por aquela encosta”, disse Wistan, “e a minha égua, sem que eu a tivesse incitado, desatou a galopar como que de pura felicidade. Nós corremos pelos campos, passamos por lagos e rios, e o meu espírito se encheu de alegria. Foi uma coisa estranha, como se eu estivesse voltando a cenários de uma vida pregressa, embora soubesse que nunca visitei esta região. Será que passei por aqui quando era pequeno, ainda novo demais para me localizar, mas já velho o bastante para guardar essas paisagens na memória? As árvores e os urzais daqui, até mesmo o próprio céu, parecem despertar alguma memória perdida.”


“É possível”, disse Axl. “Esta região e a outra mais a oeste, onde você nasceu, têm muitas semelhanças.”


“É, deve ser isso, senhor. Na região dos pântanos, nós não temos nenhuma colina de verdade, e as árvores e a relva não têm a cor que vemos agora à nossa frente. Mas foi nessa alegre galopada que a minha égua quebrou a ferradura e, embora nesta manhã a boa gente daqui tenha lhe posto uma nova, terei que cavalgar com cuidado, pois um dos cascos dela está machucado. A verdade, senhor, é que eu não te pedi que viesse aqui em cima simplesmente para admirar a paisagem, mas sim para ficar longe de ouvidos inconvenientes. Imagino que a essa altura o senhor já tenha conhecimento do que aconteceu com o menino Edwin.”


“O sr. Ivor nos contou, e nós achamos a notícia lastimável, depois de sua corajosa intervenção de ontem.”


“Talvez o senhor também já saiba que os anciãos, desesperados com o que pode acontecer com o menino aqui, imploraram para que eu o leve embora hoje mesmo. Eles me pediram para deixar o menino em alguma aldeia distante, contando alguma história de como eu o teria encontrado na estrada, perdido e faminto. Eu atenderia ao pedido de bom grado, se acreditasse que esse plano poderia realmente salvá-lo. Mas a notícia vai se espalhar facilmente para outras regiões, e no mês que vem ou no ano que vem o menino pode se ver na mesma situação difícil em que está hoje, com o agravante de ser recém-chegado e de família desconhecida. O senhor entende o que eu quero dizer?”


“O senhor tem toda a razão em temer esse desfecho, sr. Wistan.”


O guerreiro, que estivera observando a paisagem enquanto falava, puxou para trás uma mecha de cabelo embaraçado que o vento tinha soprado para a frente de seu rosto. Enquanto fazia isso, ele de repente pareceu ver alguma coisa nas feições de Axl que lhe chamou a atenção e esqueceu por alguns instantes o que pretendia dizer. Inclinando a cabeça, ele ficou examinando atentamente o rosto de Axl. Depois, deu uma risadinha e disse:


“Eu peço desculpas, senhor. É que uma lembrança me veio à cabeça. Mas voltando ao que eu ia dizer: eu não sabia nada a respeito desse menino antes de ontem à noite, mas fiquei impressionado com o modo firme como ele enfrentou cada novo terror com que se deparou. Os meus companheiros de ontem, embora tenham se mostrado corajosos ao partir, foram dominados pelo medo quando nós nos aproximamos do acampamento dos demônios. Já o menino, apesar de ter ficado à mercê dos demônios durante várias horas, comportou-se com uma calma que me deixou admirado. Muito me doeria pensar que o destino dele agora já está praticamente selado. Então, eu fiquei tentando pensar numa saída e, se o senhor e a sua boa esposa concordarem em me ajudar, é possível que tudo ainda acabe bem.”


“Nós estamos ansiosos para ajudar como pudermos, senhor. Qual é a sua proposta?”


“Quando os anciãos me pediram que levasse o menino para uma aldeia distante, sem dúvida estavam pensando numa aldeia saxã. Mas uma aldeia saxã é exatamente o lugar onde ele jamais ficará a salvo, pois são os saxões que acreditam nessa superstição a respeito da mordida que o menino levou. Por outro lado, se fosse deixado com bretões — que sabem que isso não passa de crendice —, não haveria perigo algum, mesmo que boatos sobre o que aconteceu chegassem à aldeia que o acolher. Ele é um menino forte e, como eu disse, tem uma coragem extraordinária, ainda que fale pouco. E vai ser um ajudante muito útil para qualquer comunidade desde o dia em que chegar. Pois bem, o senhor disse antes que os senhores vão seguir para leste, rumo à aldeia do seu filho. Eu imagino que ela seja exatamente o tipo de aldeia cristã que nós procuramos. Se o senhor e sua esposa falassem em favor do menino, talvez com o apoio de seu filho, isso com certeza iria garantir um bom resultado. Claro que é possível que as mesmas boas pessoas aceitassem o menino se ele chegasse comigo, mas eu seria um estranho para elas, e provavelmente inspiraria medo e desconfiança. Além disso, a missão que me trouxe a esta região impede que eu me desvie tanto para o leste.”


“O senhor está sugerindo então que eu e a minha esposa nos encarreguemos de levar o menino embora daqui”, disse Axl.


“Essa é, de fato, a minha sugestão, senhor. No entanto, minha missão permite que eu percorra pelo menos parte da mesma estrada. O senhor disse que vai pegar o caminho que passa pelas montanhas. Eu acompanharia com prazer os senhores e o menino, pelo menos até o outro lado. A minha companhia será um fardo tedioso, mas, por outro lado, as montanhas são conhecidas por serem perigosas, e pode ser que a minha espada ainda venha a lhes ser útil. Além disso, a minha égua pode carregar as bagagens dos senhores, pois, mesmo com a pata dolorida, ela não vai se queixar do peso. O que o senhor me diz?”


“Eu acho um plano excelente, senhor. A minha mulher e eu ficamos muito tristes quando soubemos da situação do menino, e será uma grande satisfação para nós poder ajudá-lo. E o senhor tem toda a razão: o lugar mais seguro para ele agora é entre os bretões. Eu não tenho dúvida de que ele será recebido com hospitalidade na aldeia do meu filho, que é uma figura respeitada por lá, praticamente um ancião em tudo, tirando a idade. Ele vai interceder pelo menino, tenho certeza, e garantir que ele seja bem acolhido.”


“Fico muito aliviado. Vou informar ao sr. Ivor o nosso plano e tentar encontrar uma maneira discreta de tirar o menino do celeiro. O senhor e sua esposa estão prontos para partir em breve?”


“A minha mulher está agora mesmo preparando provisões para a viagem.”


“Então, por favor, me esperem em frente ao portão sul. Eu estarei lá daqui a pouco com a égua e o menino Edwin. Fico grato ao senhor por dividir comigo esse problema e feliz com a perspectiva de sermos companheiros de viagem durante um ou dois dias.”







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