sexta-feira, 1 de junho de 2018

2.

Havia, no entanto, muitas coisas para providenciar antes que eles pudessem partir. Numa aldeia como aquela, muitos dos itens necessários para a viagem — como cobertas, cantis, acendalhas — pertenciam à coletividade e, para garantir seu uso, era preciso negociar muito com os vizinhos. Além disso, Axl e Beatrice, mesmo sendo idosos, tinham sua carga de tarefas diárias e não podiam simplesmente ir embora sem o consentimento da comunidade. E, quando enfim estavam prontos para partir, uma mudança no tempo os atrasou ainda mais. Pois que sentido faria arriscar-se a enfrentar perigos como a neblina, a chuva e o frio se o sol com certeza logo reapareceria?
Um dia, porém, eles finalmente partiram, de cajado na mão e trouxa às costas, numa manhã de céu claro, riscado de nuvens brancas, e brisa forte. Axl queria partir à primeira luz da manhã, pois não tinha dúvida de que o dia seria bonito, mas Beatrice fez questão de esperar que o sol subisse um pouco mais. A distância até a aldeia saxã onde eles pretendiam passar a primeira noite, ela argumentou, podia ser galgada facilmente com um dia de caminhada, e sem dúvida a prioridade deles era atravessar o canto da Grande Planície o mais perto possível do meio-dia, quando era mais provável que as forças sombrias daquele lugar estivessem adormecidas.
Já fazia algum tempo que eles não caminhavam grandes distâncias juntos, e Axl estava um pouco apreensivo quanto à capacidade de resistência da mulher. Mas, depois de uma hora de caminhada, ele se tranquilizou: embora andasse devagar — ele notou novamente que ela estava andando de um jeito meio torto, como se tentasse amortecer alguma dor —, Beatrice avançava em ritmo contínuo, de cabeça baixa para se proteger do vento em descampados, sem titubear quando deparava com terrenos cobertos de cardo e vegetação rasteira. Em colinas ou terrenos tão lamacentos que era um esforço levantar um pé depois do outro, ela diminuía bastante o ritmo, mas continuava avançando.
Nos dias que antecederam a partida dos dois, Beatrice havia ficado cada vez mais confiante de que se lembraria da rota que eles tinham de seguir, pelo menos até a aldeia saxã que ela visitara regularmente junto com as outras mulheres ao longo dos anos. Mas depois que eles não avistaram mais as colinas escarpadas situadas acima do povoado deles e atravessaram o vale do outro lado do pântano, ela perdeu um pouco da confiança. Quando se via diante de uma bifurcação numa trilha ou de um campo agitado pelo vento, ela estacava e ficava um bom tempo parada no mesmo lugar, o pânico invadindo lentamente sua expressão enquanto ela perscrutava a paisagem.
“Não se preocupe, princesa”, Axl dizia nessas ocasiões. “Fique calma e leve todo o tempo que for necessário.”
“Mas, Axl, nós não temos tempo”, ela respondia, virando-se para ele. “Temos que atravessar a Grande Planície ao meio-dia, se quisermos fazer isso com segurança.”
“Nós vamos chegar lá em boa hora, princesa. Leve todo o tempo que for necessário.”
Vale salientar aqui que se orientar em campo aberto era uma coisa muito mais difícil naquela época, e não só por causa da falta de bússolas e mapas confiáveis. Ainda não tínhamos as cercas vivas que hoje dividem de forma tão agradável a região rural entre campos, veredas e prados. Um viajante daquele tempo via-se com frequência no meio de paisagens indistinguíveis umas das outras, a vista quase idêntica independente do lado para que ele se virasse. Uma fileira de pedras eretas no horizonte distante, a curva de um rio, a inclinação peculiar de um vale: pistas desse tipo eram os únicos meios de mapear uma rota. E as consequências de se tomar o caminho errado muitas vezes eram fatais. O pior não era nem a possibilidade de sucumbir ao mau tempo: desviar-se do caminho certo significava se expor mais do que nunca ao risco de ser atacado por agressores — humanos, animais ou sobrenaturais — atocaiados ao largo das estradas principais.
Você poderia estranhar o fato de eles conversarem tão pouco enquanto caminhavam, aquele casal de idosos normalmente tão cheios de coisas para dizer um ao outro. Mas numa época em que um tornozelo quebrado ou uma ferida infeccionada podiam custar a vida, havia um reconhecimento de que era recomendável ter concentração em todo e qualquer passo que se dava. Talvez notasse também que, toda vez que o caminho ficava estreito demais para que eles andassem lado a lado, era sempre Beatrice que ia na frente, e não Axl. Isso também poderia lhe causar surpresa, pois pareceria mais natural que o homem entrasse primeiro em terrenos potencialmente perigosos — e, de fato, em bosques ou em lugares onde havia a possibilidade de existirem lobos ou ursos, eles invertiam suas posições sem discussão. Mas, na maior parte do tempo, Axl fazia questão de que a esposa fosse na frente, pela simples razão de que praticamente todos os monstros ou espíritos malignos que eles poderiam encontrar costumavam atacar a presa posicionada na retaguarda do grupo — da mesma maneira que, suponho, um grande felino persegue o antílope que está no final da manada. Havia inúmeros casos de viajantes que tinham se virado para ver o companheiro que vinha andando atrás e descoberto que ele havia sumido sem deixar rastro. Era o medo de que algo assim acontecesse que impelia Beatrice a perguntar volta e meia enquanto eles caminhavam: “Você ainda está aí, Axl?”. Ao que ele respondia rotineiramente: “Ainda estou aqui, princesa”.
Eles chegaram à beira da Grande Planície ao final da manhã. Axl sugeriu que fossem em frente e deixassem logo o perigo para trás, mas Beatrice estava determinada a esperar até meio-dia. Então se sentaram numa pedra no alto da colina cuja encosta descia até a planície e ficaram observando atentamente as sombras cada vez mais curtas de seus cajados, que eles seguravam eretos diante de si, apoiados no chão.
“O tempo pode estar bom, Axl, e eu nunca tive notícia de que nenhum mal tenha acontecido a ninguém neste canto da planície. Mesmo assim, é melhor esperar até o meio-dia, quando com certeza nenhum demônio vai querer sequer espiar para nos ver passar.”
“Vamos esperar como você propõe. E você tem razão. Afinal, é a Grande Planície, ainda que seja um canto benigno dela.”
Eles ficaram ali sentados durante algum tempo, olhando para o terreno à sua frente, quase sem pronunciar palavra. Num determinado momento, Beatrice disse:
“Quando encontrarmos o nosso filho, Axl, ele com certeza vai insistir para que nos mudemos para a aldeia dele. Não vai ser estranho deixar os vizinhos para trás depois de tantos anos, mesmo que de vez em quando eles debochem de nossos cabelos brancos?”
“Nada está decidido ainda, princesa. Vamos conversar sobre tudo isso quando estivermos com nosso filho.” Axl continuou contemplando a Grande Planície. Depois, sacudiu a cabeça e disse baixinho: “É estranho como não consigo me lembrar de absolutamente nada dele agora”.
“Acho que sonhei com ele na noite passada”, disse Beatrice. “Estava parado perto de um poço e se virou um pouco para o lado, chamando alguém. Mas o que aconteceu antes ou depois já me fugiu da memória.”
“Pelo menos você viu o nosso filho, princesa, mesmo que tenha sido em sonho. Como ele é?”
“Ele tem um rosto forte, bonito, disso eu me lembro. Mas não tenho nenhuma lembrança da cor dos olhos dele nem do formato da bochecha.”
“Eu não me lembro de nada do rosto dele agora”, disse Axl. “Deve ser efeito dessa névoa. Tem muitas coisas que não me importo nem um pouco que se percam na névoa, mas é cruel quando não conseguimos nos lembrar de algo precioso assim.”
A mulher chegou mais perto do marido e pousou a cabeça em seu ombro. O vento agora batia forte e parte do manto de Beatrice havia se soltado. Botando o braço em volta dela, Axl prendeu o manto e apertou contra o corpo da esposa.
“Bem, eu aposto que um de nós vai acabar se lembrando, não demora muito”, disse ele.
“Vamos tentar, Axl. Vamos tentar nós dois. É como se tivéssemos perdido uma pedra preciosa, mas, se nós dois procurarmos, com certeza vamos encontrá-la de novo.”
“Claro que vamos, princesa. Mas, olhe, as sombras já estão sumindo. Está na hora de descermos.”
Beatrice endireitou o corpo e começou a remexer em sua trouxa. “Tome, vamos carregar isto.”
Ela lhe entregou o que pareciam ser dois seixos lisos, mas, quando os examinou mais de perto, Axl viu padrões complexos talhados na face de ambos.
“Ponha os dois no seu cinto, Axl, e tome cuidado para manter as marcas viradas para fora. Isso vai ajudar o Senhor Cristo a nos manter a salvo. Eu carrego os outros.”
“Um já é o bastante para mim, princesa.”
“Não, Axl, nós vamos dividi-los igualmente. Agora, pelo que me lembro, há uma trilha ali mais adiante e, a menos que a chuva a tenha desmanchado, a caminhada vai ser mais fácil do que a maior parte das que fizemos até agora. Mas há um lugar onde nós precisamos ter muito cuidado. Você está me ouvindo, Axl? É quando a trilha passa por onde o gigante está enterrado. Para quem não conhece, parece uma colina comum, mas vou te fazer um sinal quando chegarmos lá, aí você vai sair da trilha atrás de mim e contornar a beira da colina até encontrarmos a mesma trilha na descida do outro lado. Não vai nos fazer nenhum bem passar por cima de um túmulo como aquele, mesmo que seja ao sol do meio-dia. Você está me entendendo direitinho, Axl?”
“Não se preocupe, estou entendendo muito bem.”
“E imagino que eu não precise lembrar que, se cruzarmos com alguma pessoa estranha pelo caminho, ou se ouvirmos alguém nos chamar, ou se encontrarmos algum animal preso numa armadilha ou ferido dentro de um fosso, ou qualquer outra coisa que chame sua atenção, você não deve dizer palavra, nem diminuir o passo por causa disso.”
“Eu não sou idiota, princesa.”
“Bom, então, Axl, está na hora de irmos em frente.”
Como Beatrice havia prometido, eles só precisaram andar uma pequena distância pela Grande Planície. A trilha pela qual seguiram, embora lamacenta em alguns trechos, permaneceu sempre bem definida e não os tirou do alcance da luz do sol em nenhum momento. Depois de um primeiro trecho em declive, ela subia de modo contínuo, até que eles se viram andando ao longo de uma crista, com charneca dos dois lados. Soprava um vento furioso, mas até que era um antídoto bem-vindo contra o sol do meio-dia. Por toda parte, a terra estava coberta de urzes e tojos, que nunca ultrapassavam a altura dos joelhos, e só de vez em quando aparecia uma ou outra árvore — espécimes solitários, encarquilhados como velhinhas, curvados por infindáveis ventanias. Então, um vale surgiu à sua direita, lembrando-os do poder e do mistério da Grande Planície e de que eles estavam atravessando apenas um pequeno canto dela.
Eles caminhavam bem perto um do outro, Axl quase nos calcanhares da mulher. Mesmo assim, no decorrer de toda a travessia, Beatrice continuou a entoar a mesma pergunta a cada cinco ou seis passos, como se fosse uma ladainha: “Você ainda está aí, Axl?”. Ao que ele respondia: “Ainda estou aqui, princesa”. Tirando essa troca ritualística de palavras, os dois nada diziam. Mesmo quando chegaram ao monte sepulcral do gigante e Beatrice fez sinais frenéticos para indicar que era hora de sair da trilha e se embrenhar por entre as urzes, os dois continuaram a perguntar e responder num tom de voz constante, como se quisessem enganar qualquer demônio que por acaso estivesse ouvindo o que pretendiam fazer. O tempo inteiro Axl se manteve atento a névoas que avançassem rapidamente e a escurecimentos súbitos no céu, mas não viu sinal de nenhuma dessas coisas. Então, por fim, eles deixaram a Grande Planície para trás. Quando adentraram um pequeno bosque cheio de pássaros canoros, Beatrice não fez nenhum comentário, mas Axl notou que todo o corpo dela havia relaxado, e ela não repetiu mais seu refrão.
Eles descansaram ao lado de um riacho, onde banharam os pés, comeram pão e encheram novamente seus cantis de água. Desse ponto em diante, seguiram por uma longa senda da época dos romanos, ladeada de carvalhos e olmos e já um pouco afundada, pela qual era bem mais fácil caminhar, mas que exigia vigilância em razão dos outros viajantes que eles com certeza iriam encontrar. E, de fato, só durante a primeira hora de caminhada eles cruzaram com uma mulher e duas crianças, com um menino que conduzia jumentos e com dois atores itinerantes que estavam correndo para se juntar de novo à sua trupe. Em todas as ocasiões, eles pararam para trocar cumprimentos, mas houve uma vez em que, ouvindo o estrépito de cascos e rodas se aproximando, eles se esconderam numa vala. No entanto, esse viajante também mostrou ser inofensivo: um lavrador saxão com um cavalo e uma carroça abarrotada de lenha.
No meio da tarde, o céu começou a se encher de nuvens escuras que pareciam anunciar uma tempestade. Eles estavam descansando debaixo de um enorme carvalho, de costas para a estrada e escondidos de quem quer que passasse. Uma grande clareira se estendia diante deles, de modo que notaram de imediato a mudança de tempo.
“Não se preocupe, princesa”, disse Axl. “Esta árvore vai nos proteger da chuva até o sol voltar.”
Mas Beatrice já estava de pé, com o tronco inclinado para a frente, uma das mãos erguidas para proteger os olhos. “Pelo que vejo, Axl, a estrada faz uma curva lá adiante. Isso quer dizer que a antiga vila não está muito longe. Eu me abriguei lá uma vez, quando vim com as mulheres. Está em ruínas, mas na época o telhado ainda estava bom.”
“Você acha que nós conseguimos chegar lá antes que a tempestade caia?”
“Se nós formos agora, acho que sim.”
“Então vamos correndo. Não há razão para nos arriscarmos a morrer porque ficamos encharcados. E, reparando melhor agora, esta árvore está cheia de buracos, dá para ver a maior parte do céu aqui em cima de mim.”
A vila em ruínas ficava mais distante da estrada do que Beatrice se lembrava. Com os primeiros pingos de chuva caindo e o céu acima deles escurecendo, eles se viram penando para descer uma trilha longa e estreita com urtigas até a cintura, por entre as quais eles tinham que abrir caminho com seus cajados. Embora estivesse bem à vista da estrada, a ruína sumia atrás de árvores e folhagens durante boa parte da trilha que levava até lá, de modo que foi com surpresa e também alívio que os viajantes de repente se perceberam diante dela.
A vila devia ter sido esplêndida no tempo dos romanos, mas agora só uma pequena parte dela continuava de pé. Pisos outrora magníficos jaziam expostos aos elementos, desfigurados por poças de água estagnada, enquanto tufos de mato brotavam por entre os ladrilhos desbotados. Restos de parede, que em alguns lugares mal chegavam à altura da canela, revelavam a antiga disposição dos cômodos. Um arco de pedra dava passagem para a parte do edifício que permanecia de pé, e Axl e Beatrice agora seguiam com cautela até lá, parando no limiar para tentar ouvir algum ruído. Passado um tempo, Axl gritou: “Tem alguém aí?”. E, como não houve resposta, acrescentou: “Somos dois velhos bretões em busca de um abrigo para nos proteger da tempestade. Viemos em paz”.
Como tudo continuou em silêncio, eles passaram sob o arco e adentraram a sombra do que um dia provavelmente fora um corredor. Emergiram na luminosidade cinzenta de um espaçoso salão, embora ali também uma parede inteira tivesse ruído. O cômodo adjacente havia desaparecido por completo, e sempre-vivas avançavam opressivamente até a beira do piso. As três paredes ainda de pé, no entanto, formavam uma área abrigada, conservando um bom teto. Encostadas à alvenaria encardida do que um dia haviam sido paredes caiadas encontravam-se duas figuras escuras, uma em pé e a outra sentada, a certa distância uma da outra.
Sentada num pedaço de alvenaria caído, uma senhora bem velhinha — mais velha do que Axl e Beatrice — e de aparência frágil como a de um passarinho estava enrolada num manto escuro, com o capuz puxado para trás apenas o suficiente para revelar suas feições rugosas. Seus olhos eram tão fundos que mal se podia vê-los. A curva das suas costas não chegava a encostar na parede atrás dela. Algo estava se remexendo no seu colo, e Axl viu que era um coelho, que ela segurava com firmeza entre suas mãos ossudas.
No ponto mais distante da mesma parede, como se quisesse ficar o mais longe possível da velha sem sair de debaixo do teto, encontrava-se um homem magro e excepcionalmente alto. Ele usava um casaco grosso e comprido, do tipo que um pastor usaria durante uma vigília numa noite fria, mas a parte inferior de suas pernas, que o casaco deixava exposta, estava nua. Nos pés, usava um tipo de sapato que Axl só tinha visto em pescadores. Embora ele por certo ainda fosse jovem, o topo da sua cabeça era todo careca, enquanto tufos escuros de cabelo cresciam em volta de suas orelhas. De costas para o salão, o homem estava postado rigidamente, com uma das mãos apoiada na parede à sua frente como se tentasse ouvir algo que estava se passando do outro lado. Quando Axl e Beatrice entraram, ele olhou para trás de relance, mas não falou nada. Também em silêncio, a velha olhava para eles fixamente, e só quando Axl disse “A paz esteja convosco” foi que eles relaxaram um pouco. O homem alto respondeu: “Entrem mais, amigos, ou vão acabar se molhando”.
De fato, o céu agora havia aberto as comportas e a chuva escorria por algum buraco no telhado, respingando no chão perto de onde os visitantes estavam. Agradecendo ao homem, Axl conduziu a esposa até a parede, escolhendo um ponto equidistante entre os dois anfitriões. Em seguida, ajudou Beatrice a tirar a trouxa das costas e depois pousou a própria trouxa no chão.
Os quatro permaneceram assim durante algum tempo, enquanto a tempestade desabava cada vez mais feroz. Então, um relâmpago iluminou o abrigo. A postura estranhamente rígida do homem alto e da velha parecia enfeitiçar Axl e Beatrice, pois agora eles também estavam tão imóveis e calados quanto os outros dois. Era quase como se, ao se deparar com um quadro e adentrá-lo, eles tivessem sido impelidos a se transformar em figuras pintadas também.
Quando o temporal cedeu lugar a uma chuva uniforme e contínua, a velhinha finalmente quebrou o silêncio. Afagando o coelho com uma das mãos enquanto o segurava com força com a outra, ela disse:
“Deus esteja convosco, primos. Peço desculpas por não tê-los cumprimentado antes, mas fiquei surpresa de vê-los aqui. Saibam que são bem-vindos, mesmo assim. Estava um dia muito bom para viajar, antes dessa tempestade repentina. Mas ela é do tipo que passa tão de repente quanto surge e não vai atrasar muito a viagem dos senhores. Além do mais, é sempre bom parar um pouco para descansar. Para onde estão indo, primos?”
“Nós estamos a caminho da aldeia do nosso filho, que aguarda ansioso nossa chegada”, respondeu Axl. “Mas esta noite pretendemos procurar abrigo numa aldeia saxã, onde esperamos chegar ao anoitecer.”
“Saxões têm modos rudes, mas costumam acolher viajantes com mais facilidade do que nosso próprio povo”, disse a velha. “Sentem-se, primos. Aquele tronco atrás dos senhores está seco e eu já me sentei nele com conforto várias vezes.”
Axl e Beatrice aceitaram a sugestão, e então o silêncio se instalou de novo, enquanto a chuva continuava caindo forte. Passado um tempo, um movimento da velha fez Axl olhar em sua direção de soslaio. Ela estava puxando as orelhas do coelho para trás e, enquanto o animal lutava para se libertar, ela o mantinha preso com firmeza, com unhas que mais pareciam garras. Axl continuou a observar e viu a velha sacar uma grande faca enferrujada com a outra mão e encostar a lâmina na goela do animal. Axl sentiu Beatrice ter um sobressalto do lado dele e se deu conta de que as manchas escuras debaixo dos pés dos dois e em vários outros pontos do piso em ruínas eram velhas manchas de sangue e de que, misturado ao cheiro de hera e pedra úmida, havia outro cheiro, leve mas persistente, de antigas matanças.
Tendo levado a faca ao pescoço do coelho, a velha ficou completamente imóvel de novo. Seus olhos fundos, Axl percebeu, estavam fixos no homem alto parado no canto oposto da parede, como se ela esperasse algum sinal dele. O homem, porém, continuava na mesma posição rígida de antes, com a testa quase encostada na parede. Ou ele não tinha notado a velha ou estava fazendo questão de ignorá-la.
“Boa senhora”, disse Axl, “mate o coelho se for preciso, mas quebre o pescoço dele de uma vez. Ou então pegue uma pedra e dê uma boa pancada em sua cabeça.”
“Se eu tivesse força para isso, senhor… Mas estou muito fraca. Só o que tenho é uma faca afiada.”
“Então eu te ajudo de bom grado. Não há necessidade de usar sua faca.” Axl se pôs de pé e estendeu a mão, mas a velha não fez nenhuma menção de lhe entregar o coelho. Permaneceu exatamente como antes, segurando a faca encostada à garganta do animal, o olhar fixo no homem do outro lado do salão.
Por fim, o homem alto se virou de frente para eles. “Amigos”, disse ele, “eu fiquei surpreso ao vê-los entrar aqui, mas agora estou contente, pois vejo que os senhores são pessoas de bem. Então eu lhes peço que, enquanto esperam a tempestade passar, os senhores me permitam lhes contar o meu problema. Eu sou um humilde barqueiro que transporta viajantes por águas agitadas. Não me queixo do trabalho, embora eu labute várias horas seguidas e — quando há muitos esperando para fazer a travessia — durma pouco e meus braços doam cada vez que puxo o remo. Trabalho debaixo de chuva, ventania ou sol escaldante, mas mantenho o ânimo sonhando com meus dias de descanso. Pois sou apenas um entre vários barqueiros, e nós nos revezamos para que cada um possa tirar um tempo de folga, ainda que depois de longas semanas de trabalho. Nos nossos dias de descanso, cada um de nós tem um lugar especial para ir, e este, amigos, é o meu. Esta casa onde um dia fui uma criança sem preocupações. Ela não é mais o que era antigamente, mas para mim está cheia de recordações preciosas, e eu venho aqui desejando apenas um pouco de tranquilidade para desfrutá-las. Agora considerem o seguinte: sempre que venho para cá, menos de uma hora depois da minha chegada, aquela senhora entra por aquele arco, senta-se e fica me provocando horas a fio, noite e dia. Faz acusações cruéis e injustas. Protegida pela escuridão, ela me dirige os xingamentos e as maldições mais terríveis que se possa imaginar. Não me dá um instante de sossego. Às vezes, como vocês estão vendo, ela traz um coelho ou algum outro pequeno animal, para matá-lo aqui e profanar com o sangue dele este lugar tão valioso para mim. Já fiz de tudo para tentar convencê-la a me deixar em paz, mas, se Deus lhe pôs alguma compaixão na alma, ela aprendeu a ignorá-la, pois não vai embora nem para de me atormentar. Agora mesmo, foi só por causa da chegada inesperada dos senhores que ela interrompeu sua perseguição a mim. E não demora muito, vai chegar a hora de eu iniciar minha viagem de volta, para outras longas semanas de trabalho árduo na água. Amigos, eu lhes suplico, façam o que puderem para convencê-la a ir embora daqui. Façam essa senhora entender que seu comportamento é abominável. Sendo de fora, é possível que tenham alguma influência sobre ela.”
Quando o barqueiro parou de falar, o silêncio se instalou mais uma vez. Axl mais tarde se lembrou de haver sentido um vago ímpeto de responder, mas sobreveio-lhe ao mesmo tempo uma sensação de que o homem tinha lhe falado num sonho e na verdade não havia necessidade de responder. Beatrice também não parecia sentir nenhum impulso de falar, pois seus olhos continuavam fixos na velha, que agora havia afastado a faca do pescoço do coelho e estava acariciando o pelo do animal, quase afetuosamente, com o fio da lâmina. Por fim, Beatrice se manifestou:
“Senhora, eu te peço, deixe que meu marido te ajude com seu coelho. Não há necessidade de derramar sangue num lugar como este, e não há bacia com que pegar esse sangue. A senhora trará má sorte não só para esse honesto barqueiro, mas também para si mesma e para todos os outros viajantes que aqui venham buscar abrigo. Guarde sua faca e abata o animal sem crueldade em algum outro lugar. E de que adianta provocar esse homem como a senhora tem feito, um barqueiro tão dedicado ao trabalho?”
“Não vamos nos precipitar falando com rispidez com essa senhora, princesa”, Axl disse com voz suave. “Nós não sabemos o que se passou entre essas pessoas. O barqueiro parece honesto, mas, por outro lado, é possível que essa senhora tenha um motivo justo para vir aqui e passar o tempo dela como tem feito.”
“O senhor não poderia ter sido mais feliz nas suas palavras, senhor”, disse a velha. “Será possível que eu ache que esse é um jeito agradável de passar os dias que ainda me restam? Eu preferia estar bem longe daqui, na companhia do meu marido, e é por causa desse barqueiro que agora estou separada dele. O meu marido era um homem sábio e cuidadoso, senhor, e nós passamos um bom tempo planejando a nossa viagem; falamos dela e sonhamos com ela durante muitos anos. Quando finalmente ficamos prontos e tínhamos tudo de que precisávamos, pegamos a estrada e, depois de alguns dias, encontramos a enseada de onde poderíamos zarpar rumo à ilha. Ficamos esperando o barqueiro e, passado algum tempo, avistamos o barco dele vindo na nossa direção. Mas, para nosso azar, foi justo esse homem aqui presente que veio até nós. Vejam como ele é alto. De pé dentro do barco na água, com um longo remo na mão e o céu ao fundo, ele parecia tão alto e magro quanto aqueles artistas que andam em pernas de pau. Ele veio até as pedras onde eu e meu marido estávamos e amarrou o barco. E até hoje não sei como ele conseguiu, mas de alguma forma nos enganou. Nós confiamos demais nele. Com a ilha tão perto, esse barqueiro levou meu marido e me deixou esperando na praia, isso depois de termos vivido mais de quarenta anos como marido e mulher, raras vezes tendo passado um dia separados. Não consigo entender como ele fez isso. A voz dele deve ter nos feito sonhar, porque, quando dei por mim, ele estava remando para longe com meu marido no barco e eu continuava em terra firme. Mesmo assim eu não acreditei. Quem imaginaria que um barqueiro seria capaz de tamanha crueldade? Então, fiquei esperando. Disse a mim mesma que ele só tinha feito aquilo porque o barco não podia levar mais de um passageiro de cada vez, pois a água estava revolta naquele dia e o céu quase tão escuro quanto está agora. Fiquei lá na pedra, vendo o barco diminuir cada vez mais até virar um pontinho perdido na distância. Mesmo assim, continuei esperando. Passado um tempo, o pontinho começou a crescer de novo e vi que era o barqueiro voltando na minha direção. Pouco depois, eu já estava conseguindo ver a cabeça do barqueiro, lisa como um seixo, e o barco, agora sem passageiro nenhum. Imaginei que fosse minha vez e que logo eu estaria ao lado do meu amado de novo. Mas, quando chegou ao lugar onde eu estava esperando e amarrou a corda dele à estaca, ele balançou a cabeça e se recusou a me levar para a ilha. Eu reclamei, chorei, implorei, mas ele não quis saber. Em vez disso, me ofereceu — vejam que crueldade! — me ofereceu um coelho, que, segundo ele, tinha sido pego numa armadilha no litoral da ilha. Ele tinha trazido o coelho para mim, achando que seria um jantar adequado para a minha primeira noite de solidão. Em seguida, vendo que não havia mais ninguém esperando para ser transportado, ele foi embora e me deixou aos prantos na praia, segurando o maldito coelho. Deixei o coelho fugir para o meio das urzes logo depois, pois não tive apetite naquela noite nem nas muitas que se seguiram. É por isso que trago o meu próprio presentinho para ele sempre que venho aqui: um coelho para o ensopado dele, em troca da gentileza que me fez naquele dia.”
“O coelho era para ser o meu próprio jantar naquela noite”, irrompeu a voz do barqueiro, vinda do outro lado do salão. “Eu fiquei com pena e dei o coelho para ela. Foi uma simples gentileza.”
“Nós nada sabemos do seu trabalho, senhor”, disse Beatrice, “mas parece de fato uma crueldade deixar essa senhora sozinha na praia do jeito como ela descreveu. O que levou o senhor a fazer uma coisa dessas?”
“Boa senhora, a ilha de que essa mulher fala não é uma ilha comum. Nós, barqueiros, já levamos muitos até lá ao longo dos anos e, a essa altura, deve haver centenas habitando seus campos e bosques. Mas se trata de um lugar de características estranhas, e quem chega lá vaga por entre as árvores e a vegetação sozinho, sem jamais ver qualquer outra alma. De vez em quando, numa noite de luar ou quando uma tempestade está prestes a cair, é possível sentir a presença dos outros habitantes. Mas na maior parte dos dias, para cada viajante, é como se ele fosse o único morador da ilha. Eu teria transportado essa senhora de bom grado, mas, quando entendeu que não ficaria junto com o marido, ela declarou que não queria essa solidão e recusou-se a ir. Eu acatei sua decisão, como é minha obrigação, e deixei que ela seguisse seu próprio caminho. O coelho, como eu disse, eu dei a ela por pura gentileza. E os senhores estão vendo como ela me agradece.”
“Esse barqueiro é ardiloso”, disse a velha. “Ele tem a ousadia de tentar enganá-los, apesar de os senhores serem de fora. Quer fazer com que acreditem que todas as almas vagam sozinhas naquela ilha, mas não é verdade. Por que então o meu marido e eu teríamos passado tantos anos sonhando em ir para um lugar assim? A verdade é que muitos recebem permissão de atravessar a água como marido e mulher para morar juntos na ilha. Há muitos que vagam por aquelas mesmas florestas e praias tranquilas de braços dados. O meu marido e eu sabíamos disso. Sabíamos desde crianças. Caros primos, se vasculharem sua memória, os senhores irão se lembrar de que isso é verdade, exatamente do jeito que acabei de dizer. Nós não tínhamos a menor ideia, enquanto esperávamos naquela enseada, de como o barqueiro que atravessaria as águas para nos buscar seria cruel.”
“Só uma parte do que ela falou é verdade”, disse o barqueiro. “De vez em quando, um casal recebe permissão para fazer a travessia até a ilha, mas isso é raro. É necessário que exista um vínculo de amor excepcionalmente forte entre os dois. Às vezes de fato acontece, eu não nego, e é por isso que quando encontramos um marido e sua esposa, ou mesmo amantes que não são casados esperando para ser transportados, é nosso dever interrogá-los cuidadosamente. Pois cabe a nós sentir se o vínculo que existe entre os dois é forte o bastante para que eles façam a travessia juntos. Essa senhora reluta em aceitar isso, mas o vínculo dela com o marido simplesmente era fraco demais. Se ela examinar o próprio coração, duvido que se atreva a dizer que a conclusão a que cheguei naquele dia estava errada.”
“Senhora”, disse Beatrice. “O que a senhora nos diz?”
A velha permaneceu em silêncio. Manteve a cabeça baixa e continuou a passar a lâmina nos pelos do coelho melancolicamente.
“Senhora”, disse Axl, “quando a chuva parar, nós vamos voltar para a estrada. Por que a senhora não vai conosco? Nós a acompanharemos com prazer durante parte do seu caminho e podemos conversar com calma sobre o que a senhora quiser. Deixe esse bom barqueiro em paz para desfrutar do que resta desta casa enquanto ela ainda está de pé. De que adianta ficar aqui desse jeito? E, se a senhora quiser, eu mato o coelho de uma vez antes que os nossos caminhos se separem. O que a senhora me diz?”
A velha não respondeu nem deu qualquer sinal de ter escutado o que Axl disse. Depois de algum tempo, ela se pôs lentamente de pé, segurando o coelho junto ao peito. Era uma mulher de estatura minúscula, e seu manto se arrastava no chão enquanto ela caminhava rumo ao lado destruído do salão. A água que escorria de uma parte do telhado caiu em cima dela, mas a velha não pareceu se importar. Quando chegou à extremidade oposta do piso, ela parou e ficou olhando para a chuva e a vegetação que começava a invadir o salão. Em seguida, curvando-se devagar, pousou o coelho no chão, perto de seus pés. Talvez petrificado de medo, o animal a princípio não se mexeu. Depois, correu para o meio do mato e sumiu.
A velha ergueu o tronco com cuidado. Quando se virou, parecia estar olhando para o barqueiro — seus olhos estranhamente encovados não permitiam que se tivesse certeza. Então, ela disse: “Esses estranhos tiraram o meu apetite. Mas ele vai voltar, eu não tenho dúvida”.
Dizendo isso, ela levantou a barra do manto e entrou no mato com passos lentos e cautelosos, como quem entra numa piscina. A chuva caía sem parar, e ela cobriu melhor a cabeça com o capuz antes de dar os passos seguintes entre as urtigas altas.
“Espere alguns instantes que nós vamos com a senhora”, Axl gritou para ela. Mas logo sentiu a mão de Beatrice no seu braço e a ouviu sussurrar:
“É melhor não se meter com ela, Axl. Deixe que vá embora.”
Pouco depois, quando foi até o lugar onde a velha havia entrado no mato, Axl imaginava que fosse vê-la parada em algum lugar, impedida de seguir adiante pela folhagem. Mas não encontrou nenhum sinal dela.
“Obrigado, amigos”, o barqueiro disse atrás dele. “Talvez ao menos hoje eu tenha paz para relembrar minha infância.”
“Nós também vamos deixá-lo em paz, barqueiro, assim que essa chuva passar”, disse Axl.
“Não há pressa, amigos. Os senhores falaram com muita sensatez e eu lhes sou grato por isso.”
Axl continuou a olhar para a chuva. Algum tempo depois, ouviu a esposa dizer atrás dele: “Esta casa devia ser magnífica antigamente, senhor”.
“Ah, era mesmo, boa senhora. Quando menino, eu não tinha ideia do quanto ela era magnífica, pois não conhecia nenhum outro lugar. Ela era cheia de quadros e tesouros maravilhosos, cheia de empregados sábios e gentis. Logo depois daquele corredor ali, havia uma sala de banquetes.”
“Vê-la assim deve deixá-lo triste, senhor.”
“Na verdade, boa senhora, eu me sinto grato por ela ainda continuar de pé, mesmo que esteja assim. Pois esta casa testemunhou tempos de guerra, quando muitas outras como ela foram totalmente destruídas por incêndios e agora não passam de um ou dois montes cobertos de capim e urzes.”
Então, Axl ouviu os passos de Beatrice vindo em sua direção e sentiu a mão dela no seu ombro. “O que é, Axl?”, ela perguntou em voz baixa. “Eu estou vendo que você está aflito.”
“Não é nada, princesa. É só esta ruína. Por um momento, foi como se fosse eu que estivesse me lembrando de coisas que aconteceram aqui.”
“Que tipo de coisas, Axl?”
“Não sei, princesa. Quando o homem falou de guerras e de casas incendiadas, foi quase como se algo estivesse voltando a minha memória. Deve ter sido antes de nos conhecermos.”
“Existiu mesmo um tempo antes de nos conhecermos, Axl? Às vezes tenho a sensação de que nós estamos juntos desde que éramos bebês.”
“Eu também tenho a mesma sensação, princesa. Deve ser só alguma maluquice que me deu neste lugar estranho.”
Ela ficou olhando para Axl, pensativa. Depois, apertou a mão dele e disse baixinho: “Este lugar é muito esquisito mesmo e pode nos causar mais malefícios do que a chuva. Estou ansiosa para ir embora daqui, Axl. Antes que aquela mulher volte ou aconteça coisa pior”.
Axl fez que sim com a cabeça. Então, virando-se, disse para o homem do outro lado do salão: “Bem, barqueiro, como o céu parece estar clareando, vamos seguir nosso caminho. Muito obrigado por ter nos dado abrigo”.
O barqueiro não falou nada, mas, enquanto os dois botavam suas trouxas nas costas, ele veio ajudá-los, entregando-lhes seus cajados. “Façam uma boa viagem, amigos”, disse ele. “Espero que encontrem seu filho em boa saúde.”
Eles agradeceram de novo e já estavam atravessando o arco quando Beatrice parou de repente e olhou para trás.
“Já que estamos partindo, senhor, e talvez nunca mais tornemos a vê-lo”, disse ela, “será que o senhor permitiria que eu fizesse uma pequena pergunta?”
Parado no seu lugar de costume, perto da parede, o barqueiro a observava com atenção.
“O senhor falou de seu dever de interrogar todo casal que esteja esperando para fazer a travessia”, Beatrice continuou. “Falou da necessidade de descobrir se o vínculo de amor entre os dois é forte o bastante para permitir que eles morem juntos na ilha. Bem, senhor, eu fiquei pensando sobre isso. Que tipo de perguntas o senhor faz para descobrir o que precisa?”
Por um momento, o barqueiro pareceu hesitar. Depois, disse: “Para ser franco, boa senhora, não me cabe falar sobre esses assuntos. Na verdade, nem deveríamos ter nos encontrado hoje, mas algum curioso acaso nos uniu e não lamento que isso tenha acontecido. Os senhores foram bondosos e ficaram do meu lado, e eu lhes sou grato por isso. Então, vou responder da melhor forma que me for possível. Como a senhora disse, é meu dever interrogar todos que desejem fazer a travessia até a ilha. Se é um casal tal como a senhora falou, que acredita que o vínculo entre eles é forte o bastante, tenho que pedir a cada um deles que me relate suas lembranças mais caras. Eu peço a um e depois ao outro que faça isso. Eles têm que falar separadamente. Dessa forma, a verdadeira natureza do vínculo que existe entre o casal logo se revela”.
“Mas não é difícil, senhor, ver o que realmente há no coração das pessoas?”, perguntou Beatrice. “As aparências enganam com tanta facilidade.”
“É verdade, boa senhora, mas nós, barqueiros, já vimos tantos viajantes ao longo dos anos que não demoramos muito a perceber o que está por trás das aparências. Além disso, quando os viajantes falam de suas lembranças mais caras, é impossível para eles ocultar a verdade. Um casal pode declarar estar unido por amor, mas nós, barqueiros, podemos ver em vez disso ressentimento, raiva e até ódio. Ou um enorme vazio. Às vezes, só o medo da solidão e mais nada. Um amor infinito, que resistiu à passagem dos anos, isso nós só encontramos raramente. E quando encontramos, temos enorme prazer em transportar o casal junto. Boa senhora, já falei mais do que devia.”
“Eu te agradeço por isso, barqueiro. Era só para satisfazer a curiosidade de uma velha. Agora nós vamos deixá-lo em paz.”
“Que vocês tenham uma boa viagem.”
* * *

Eles voltaram pelo mesmo caminho que haviam aberto antes por entre as samambaias e urtigas. A tempestade tinha tornado o solo traiçoeiro; assim, por maior que fosse a ansiedade dos dois de deixar a vila para trás, eles avançavam com passos cuidadosos. Quando finalmente chegaram à estrada afundada, a chuva ainda não havia passado, e eles se abrigaram debaixo da primeira árvore frondosa que conseguiram encontrar.
“Você está muito encharcada, princesa?”
“Não se preocupe, Axl. O meu casaco cumpriu seu papel. E você, como está?”
“Nada que o sol não possa secar rapidamente quando voltar.”
Eles pousaram as trouxas e ficaram encostados no tronco da árvore, recuperando o fôlego. Passado um tempo, Beatrice disse baixinho:
“Axl, estou com medo.”
“Mas por quê, princesa? Nada de mal pode nos acontecer agora.”
“Você se lembra daquela mulher estranha, vestida com trapos escuros, que você viu conversando comigo perto do velho pilriteiro naquele dia? Ela podia parecer uma andarilha maluca, mas a história dela tem muito em comum com a que a velha nos contou agora há pouco. O marido dela também tinha sido levado por um barqueiro, e ela, deixada para trás na praia. E quando estava voltando da enseada, chorando de tristeza e solidão, ela se viu atravessando a beira de um vale alto. Conseguia ver um bom pedaço do caminho à sua frente e também um bom pedaço atrás de si, e ao longo do caminho inteiro havia pessoas chorando exatamente como ela. Quando eu estava ouvindo essa história, fiquei com medo, mas não muito, porque disse a mim mesma que isso não tinha nada a ver com nós dois, Axl. Mas a mulher continuou falando e disse que esta terra tinha sido amaldiçoada com uma névoa do esquecimento, uma coisa sobre a qual nós mesmos já falamos várias vezes. E aí ela me perguntou: ‘Como a senhora e o seu marido vão provar o seu amor um pelo outro, se não conseguem se lembrar do passado que compartilharam?’. E tenho pensado nisso desde então. Às vezes, penso nisso e fico com muito medo.”
“Mas medo de quê, princesa? Nós não temos planos de viajar para nenhuma ilha desse tipo nem desejo de fazer nada parecido.”
“Mesmo assim, Axl. E se nosso amor murchar antes que tenhamos a chance de sequer pensar em ir para esse lugar?”
“O que você está dizendo, princesa? Como é que o nosso amor pode murchar? Ele não está mais forte agora do que quando éramos dois jovens tolos e apaixonados?”
“Mas, Axl, nós não conseguimos sequer nos lembrar dessa época. Nem de nenhum dos anos entre aquele tempo e agora. Não lembramos das nossas brigas mais difíceis nem dos pequenos momentos que foram deliciosos e preciosos para nós. Não lembramos do nosso filho nem por que ele está longe de nós.”
“Podemos fazer todas essas lembranças voltarem. Além disso, o sentimento que tenho por você no meu coração vai continuar lá de qualquer forma, não importa o que eu lembre ou esqueça. Você não sente assim também?”
“Eu sinto, Axl. Mas ao mesmo tempo eu me pergunto se o que sentimos no nosso coração hoje não é como esses pingos de chuva que ainda continuam caindo em cima de nós das folhas encharcadas da árvore, apesar de a chuva em si já ter parado de cair faz tempo. Eu me pergunto se, sem as nossas lembranças, o nosso amor não está condenado a murchar e morrer.”
“Deus não permitiria uma coisa dessas, princesa.” Axl disse isso bem baixinho, quase sussurrando, pois ele próprio tinha sentido um medo obscuro invadi-lo.
“No dia em que conversei com a estranha perto do velho pilriteiro”, Beatrice continuou, “ela me recomendou que não perdesse mais tempo. Disse que tínhamos que fazer todo o possível para lembrar o que vivemos juntos, tanto as coisas boas como as ruins. E agora aquele barqueiro, quando nós estávamos indo embora, deu exatamente a resposta que eu previa e temia. Que chance nós temos, Axl, do jeito que estamos agora? E se alguém como ele nos perguntasse quais são as nossas lembranças mais preciosas? Eu estou com tanto medo, Axl.”
“Não fique assim, não há nada a temer. As nossas lembranças não sumiram para sempre, elas só estão escondidas em algum lugar por causa dessa maldita névoa. Mas nós vamos encontrá-las de novo, uma por uma se for necessário. Não é por isso que estamos fazendo esta viagem? Quando o nosso filho estiver diante dos nossos olhos, muitas coisas com certeza vão começar a voltar à nossa memória.”
“Espero que sim. O que aquele barqueiro disse me deixou mais apavorada ainda.”
“Esqueça o barqueiro, princesa. O que poderíamos querer com o barco ou mesmo com a ilha dele? E você tem razão: a chuva parou e nós vamos ficar mais secos saindo debaixo desta árvore. Vamos seguir nosso caminho e parar de nos preocupar com essas coisas.”

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