PARTE I
1.
Você teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilômetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas. A maior parte das estradas deixadas pelos romanos já teria àquela altura se fragmentado ou ficado coberta de vegetação, muitas delas desaparecendo em meio ao mato. Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. As pessoas que moravam ali perto — e pode-se imaginar o grau de desespero que as teria levado a se estabelecer num lugar tão soturno — teriam razão de sobra para temer essas criaturas, cuja respiração ofegante se fazia ouvir muito antes de seus corpos deformados emergirem da neblina. Mas esses monstros não causavam espanto. As pessoas da época os teriam encarado como perigos cotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças.
De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando — talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios —, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas em sua direção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades.
Numa dessas áreas na beira de um extenso pântano, à sombra de algumas colinas de contornos irregulares, vivia um casal de idosos, Axl e Beatrice. Talvez não fossem exatamente esses os nomes, mas, para facilitar, é assim que vamos nos referir a eles. Eu diria que esse casal levava uma vida isolada, mas naquele tempo poucos viviam “isolados” em qualquer dos sentidos que entendemos hoje. Para se manter aquecidos e ter proteção, os aldeões moravam em tocas, muitas delas escavadas bem lá no fundo da encosta da colina, que se ligavam umas às outras por passagens subterrâneas e corredores cobertos. O nosso casal de velhinhos morava num desses conjuntos labirínticos de tocas, ou abrigos — “edifício” seria uma palavra digna demais para descrever aquilo —, com cerca de sessenta outros aldeões. Se saísse desse abrigo e caminhasse por vinte minutos ao redor da colina, você chegaria à comunidade vizinha, que lhe pareceria idêntica à primeira. Mas, para os próprios habitantes, haveria muitos detalhes para distinguir um abrigo do outro, dos quais eles sentiriam orgulho ou vergonha.
Não quero dar a impressão de que era só isso que existia na Grã-Bretanha daquele tempo; de que numa época em que magníficas civilizações floresciam em outras partes do mundo, aqui ainda não estávamos muito além da Idade do Ferro. Se tivesse a chance de perambular à vontade pelo interior, você poderia muito bem encontrar castelos cheios de música, boa comida, excelência atlética; ou mosteiros com moradores extremamente cultos. Mas não há como negar: mesmo montado num cavalo forte, com o tempo bom, você poderia passar dias cavalgando sem avistar nenhum castelo nem mosteiro se elevando do meio da vegetação. A maior parte do tempo, você veria comunidades como a que acabei de descrever e — a menos que estivesse levando presentes como alimentos e roupas, ou estivesse armado até os dentes — não teria a menor garantia de ser bem recebido. Lamento pintar um quadro como esse do nosso país naquela época, mas o que se há de fazer?
Voltando a Axl e Beatrice. Como eu dizia, esse casal idoso morava na margem externa do abrigo, de modo que a toca deles ficava menos protegida dos elementos e pouco se beneficiava do calor da fogueira da Grande Câmara, onde todos se reuniam à noite. Talvez tenha havido uma época em que moravam mais perto do fogo, uma época em que eles moravam com os filhos. Na verdade, eram exatamente ideias assim que vinham à cabeça de Axl quando ele ficava acordado na cama nas horas vazias antes do amanhecer, enquanto sua mulher dormia um sono profundo ao seu lado, e nesse momento a sensação de uma perda indefinida começava a lhe doer no coração, impedindo-o de pegar no sono de novo.
Talvez tenha sido por isso que, naquela manhã específica, Axl desistiu de ficar na cama e saiu de mansinho do abrigo para ir se sentar lá fora, no banco velho e torto que ficava ao lado da entrada, à espera dos primeiros sinais da luz do dia. Era primavera, mas o ar ainda estava congelando, embora Axl estivesse enrolado no manto de Beatrice, que ele tinha pegado ao sair. No entanto, ficou tão absorto em seus pensamentos que, quando se deu conta de como estava com frio, as estrelas já tinham praticamente sumido, um brilho começava a se espalhar pelo horizonte e as primeiras notas do canto dos pássaros emergiam da penumbra.
Axl se levantou lentamente do banco, arrependido de ter passado tanto tempo do lado de fora. Gozava de boa saúde, mas tinha levado um bom tempo para se livrar da última febre e não queria que ela voltasse. Sentia agora a umidade nas suas pernas, porém, quando se virou para voltar para dentro do abrigo, o que mais sentiu foi satisfação, pois naquela manhã ele tinha conseguido se lembrar de várias coisas que vinham lhe fugindo à memória já fazia algum tempo. Além disso, sentia que estava prestes a tomar uma decisão muito importante — que vinha sendo adiada havia muito tempo — e isso lhe dava um entusiasmo que ele estava ansioso para compartilhar com a esposa.
Do lado de dentro, as passagens entre as tocas ainda estavam em total escuridão, e ele foi obrigado a tatear o caminho para vencer a pequena distância de volta até a porta de sua câmara. Muitas das “portas” no interior do abrigo não passavam de um arco para marcar a entrada de uma câmara. A natureza aberta desse arranjo não incomodava os aldeões por lhes tirar a privacidade, mas permitia que os quartos aproveitassem qualquer calorzinho que viesse da grande fogueira pelos corredores ou das outras fogueiras menores permitidas dentro do abrigo. No entanto, como ficava longe demais de qualquer fogueira, o quarto de Axl e Beatrice tinha algo que poderíamos reconhecer como uma porta de verdade: uma grande moldura de madeira entrecruzada com pequenos galhos, ramos de parreira e de cardo, que alguém que estivesse entrando ou saindo precisava levantar e empurrar para o lado, e que impedia a entrada de correntes de ar frio. Axl teria dispensado de bom grado essa porta, mas, com o tempo, ela havia se tornado um motivo considerável de orgulho para Beatrice. Muitas vezes, quando voltava para o quarto, ele encontrava a esposa retirando ramos murchos dessa construção e os substituindo por outros mais frescos que ela colhera durante o dia.
Naquela manhã, Axl afastou a porta apenas o suficiente para poder entrar, tomando cuidado para fazer o mínimo de barulho possível. Ali, a luz do amanhecer começava a se infiltrar no quarto pelas pequenas frestas da parede externa. Ele conseguia ver vagamente sua própria mão diante de si e, na cama de capim, a silhueta de Beatrice, que ainda parecia dormir sob as cobertas grossas.
Axl ficou tentado a acordar a mulher, pois um lado seu tinha certeza de que, se nesse momento ela estivesse acordada e conversasse com ele, qualquer barreira que ainda restasse contra a decisão que ele acabara de tomar finalmente ruiria. Mas ainda levaria algum tempo para a comunidade se levantar e o dia de trabalho começar, então o homem se acomodou no banquinho que ficava num canto do quarto, ainda bem embrulhado no manto da esposa.
Ele se perguntava se a neblina naquela manhã seria muito espessa e se, quando a escuridão desaparecesse, descobriria que ela tinha penetrado pelas rachaduras dentro do quarto deles. Mas, depois, os pensamentos dele se desviaram dessas questões e se concentraram novamente no que o preocupava antes. Será que eles sempre tinham vivido assim, só os dois, na periferia da comunidade? Ou será que um dia as coisas já haviam sido muito diferentes? Mais cedo, lá fora, alguns fragmentos de uma recordação tinham lhe voltado à mente: um breve momento em que ele estava andando pelo longo corredor central do abrigo, com o braço em torno dos ombros de um de seus filhos e o corpo um pouco curvado, não por causa da idade, como poderia acontecer agora, mas simplesmente porque queria evitar bater a cabeça nas vigas do corredor sombrio. Talvez a criança tivesse acabado de lhe dizer alguma coisa engraçada e os dois estivessem rindo. Mas agora, exatamente como acontecera antes lá fora, nada se fixava direito em sua mente e, quanto mais ele se concentrava, mais os fragmentos pareciam se tornar indistintos. Talvez fossem apenas fantasias de um velho tolo. Talvez Deus nunca tivesse lhes dado filhos.
Você pode estar se perguntando por que Axl não pedia aos outros aldeões que o ajudassem a recordar o passado, mas isso não era tão fácil quanto se poderia supor, pois naquela comunidade o passado raramente era discutido. Não que fosse um tabu, mas ele havia de algum modo sumido em meio a uma névoa tão densa quanto a que cobria os pântanos. Simplesmente não ocorria àqueles aldeões pensar sobre o passado — nem mesmo o recente.
Como exemplo, citemos uma coisa que vinha incomodando Axl havia algum tempo: ele tinha certeza de que, recentemente, havia entre eles uma mulher de longos cabelos ruivos — uma mulher que era tida como uma figura fundamental para a aldeia. Sempre que alguém se machucava ou ficava doente, era essa mulher ruiva, tão habilidosa na arte da cura, que era imediatamente chamada. Agora, porém, não se via mais essa mulher em parte alguma, e ninguém parecia estranhar que ela tivesse sumido, nem lamentar sua ausência. Certa manhã, quando Axl tocou nesse assunto com três vizinhos enquanto trabalhava com eles para quebrar o gelo que cobria o campo, a resposta que lhe deram mostrou que os três realmente não tinham a menor ideia do que ele estava falando. Um dos homens até parou de trabalhar para fazer um esforço de memória, mas no fim balançou a cabeça, fazendo que não. “Deve ter sido muito tempo atrás”, disse ele.
“Eu também não tenho nenhuma lembrança dessa mulher”, Beatrice disse a Axl quando ele tocou no assunto uma noite. “Talvez você tenha sonhado com ela para satisfazer suas próprias necessidades, Axl, apesar de ter uma esposa aqui ao seu lado que está menos encurvada do que você.”
Essa conversa havia acontecido em algum momento do outono anterior, e eles estavam deitados lado a lado na cama, num breu absoluto, ouvindo a chuva bater no teto da toca.
“É bem verdade que você não envelheceu nada com o passar dos anos, princesa”, Axl tinha dito. “Mas a mulher de quem falei não era um sonho, e você mesma se lembraria dela se parasse um instante para pensar no assunto. Não tem mais de um mês que ela estava aqui na nossa porta, uma alma generosa perguntando se queríamos que nos trouxesse alguma coisa. Não é possível que você não se lembre.”
“Mas por que é que ela estava querendo trazer alguma coisa para nós? Era parente nossa por acaso?”
“Acho que não, princesa. Ela só estava sendo gentil. Não é possível que você não se lembre. Volta e meia, essa mulher vinha aqui para perguntar se não estávamos com frio ou com fome.”
“O que eu estou perguntando, Axl, é por que ela foi escolher justo nós dois como alvo da gentileza dela.”
“Também fiquei me perguntando isso na época, princesa. Eu me lembro de pensar: ‘Bom, o trabalho dela é cuidar dos doentes e, no entanto, nós dois estamos tão saudáveis quanto a maioria das pessoas da aldeia. Será que está correndo algum boato de que há uma praga a caminho e essa mulher veio aqui para nos examinar?’. Mas acabou que não havia praga nenhuma e ela só estava sendo gentil mesmo. Agora que estamos falando sobre isso, outra coisa me vem à lembrança: ela estava parada ali, dizendo para não ligarmos para as crianças que ficavam nos xingando. E foi isso. Depois, nunca mais vimos essa mulher.”
“Não só essa ruiva é uma invenção da sua cabeça, Axl, como ela é uma tola de ficar se preocupando com um bando de crianças e com as brincadeiras delas.”
“Foi exatamente o que pensei na época, princesa. Que mal as crianças poderiam nos fazer? Aquilo era só uma maneira de elas se distraírem, já que o tempo lá fora estava tão ruim. Respondi que nós não tínhamos dado a mínima importância para isso, mas a mulher quis ser amável mesmo assim. E aí eu lembro que ela disse que era uma pena nós termos que passar nossas noites sem uma vela sequer.”
“Se essa criatura ficou com pena por não termos mais velas, pelo menos numa coisa ela tinha razão”, Beatrice disse. “É um acinte nos obrigarem a passar noites como essas sem nenhuma vela, quando nossas mãos são tão firmes quanto as de qualquer um. Enquanto isso, tem gente que enche a cara de sidra toda noite e pode ter vela no quarto, ou gente que deixa os filhos correrem de um lado para o outro feito uns malucos. No entanto, foi a nossa vela que eles tiraram, e agora eu mal consigo ver o seu vulto, Axl, mesmo estando bem do seu lado.”
“Eles não agiram com a intenção de ofender, princesa. É só a forma como as coisas sempre foram feitas, apenas isso.”
“Bom, não é só a ruiva dos seus sonhos que acha estranho terem tirado a nossa vela. Ontem mesmo — ou foi anteontem? — passei pelas mulheres na beira do rio e tenho certeza de que ouvi várias delas comentarem, quando acharam que eu já estava longe o bastante e não ia ouvir, que vergonha era um casal honesto como nós dois ter que passar todas as noites no escuro. Então sua mulher imaginária não é a única que pensa assim.”
“Eu já disse que ela não é uma mulher imaginária, princesa. Todo mundo aqui a conhecia um mês atrás e falava muito bem dela. O que será que fez com que todo mundo, inclusive você, esquecesse da existência dela?”
Lembrando-se dessa conversa agora, naquela manhã de primavera, Axl estava quase disposto a admitir que a mulher ruiva fora uma fantasia sua. Afinal, ele era um homem de idade e propenso a se confundir de vez em quando. Contudo, esse caso da mulher ruiva tinha sido apenas um numa longa série de episódios intrigantes desse tipo. Para sua frustração, Axl não estava conseguindo se lembrar de muitos exemplos no momento, mas foram vários casos, disso tinha certeza. Havia, por exemplo, o incidente envolvendo Marta.
Ela era uma menininha de nove ou dez anos que sempre tivera fama de destemida. Nenhuma das histórias de arrepiar os cabelos que se contavam sobre o que podia acontecer com crianças desgarradas parecia diminuir o espírito de aventura da menina. Então, no fim de tarde em que, restando menos de uma hora de luz do dia, com a névoa se aproximando e os uivos dos lobos já se fazendo ouvir da colina, começou a circular a notícia de que Marta havia sumido, todo mundo largou na mesma hora o que estava fazendo, alarmado. Durante os minutos seguintes, vozes gritaram o nome dela por todo o abrigo e o som de passos apressados ecoou para cima e para baixo pelos corredores, enquanto os aldeões procuravam pela menina em todos os quartos, todas as cavas de armazenamento e cavidades sob os caibros, todo esconderijo em que uma criança poderia se enfiar por diversão.
Então, no meio desse pânico, dois pastores que voltavam de seu turno nas montanhas entraram na Grande Câmara e foram se aquecer perto do fogo. Enquanto faziam isso, um deles contou que no dia anterior tinham visto uma carriça voar em círculos acima da cabeça deles, uma, duas, três vezes. Não havia dúvida, disse ele, era uma carriça. A novidade se espalhou rapidamente pelo abrigo e logo uma multidão já tinha se aglomerado em volta do fogo para ouvir a história dos pastores. Até mesmo Axl tinha corrido para se juntar à multidão, pois a aparição de tal ave na terra deles era uma notícia de fato extraordinária. Entre os muitos poderes atribuídos à carriça estava a habilidade de afugentar lobos e, segundo contavam, havia lugares em que os lobos tinham desaparecido por completo por sua causa.
A princípio, os pastores foram interrogados avidamente e forçados a repetir sua história vezes a fio. Depois, o ceticismo começou aos poucos a se espalhar entre os ouvintes. Muitas pessoas já haviam relatado casos parecidos, alguém salientou, e todas as vezes descobriu-se que eram infundados. Outro declarou que, na primavera anterior, aqueles mesmos pastores haviam contado uma história idêntica e, no entanto, ninguém mais avistara carriça nenhuma. Zangados, os dois pastores negaram terminantemente ter relatado qualquer história parecida antes, e logo a multidão começou a se dividir entre os que acreditavam nos pastores e os que diziam ter alguma lembrança do suposto episódio no ano anterior.
Conforme a discussão ia ficando mais acalorada, Axl percebeu que estava lhe batendo aquela sensação incômoda e familiar de que havia alguma coisa errada. Então, afastando-se do tumulto e da gritaria, ele saiu para ver a noite cair e a névoa se aproximar. Depois de algum tempo, fragmentos de memória começaram a se encaixar uns nos outros dentro de sua cabeça e ele se lembrou do sumiço de Marta, do perigo e de como, não fazia muito tempo, todo mundo estava procurando pela menina. Mas logo essas lembranças já estavam se embaralhando, do mesmo modo como um sonho se torna confuso poucos segundos depois de acordarmos, e foi só com um extremo esforço de concentração que Axl conseguiu continuar pensando na pequena Marta, enquanto as vozes atrás dele não paravam de discutir a carriça. Então, enquanto estava parado lá desse jeito, ele ouviu o som de uma menina cantando baixinho e viu Marta surgir de dentro da névoa.
“Você é uma criança estranha, menina”, disse Axl quando ela veio saltitando até ele. “Não tem medo do escuro, não? Nem dos lobos e dos ogros?”
“Ah, eu tenho medo deles sim, senhor”, ela respondeu, sorrindo. “Mas eu sei me esconder deles. Espero que os meus pais não tenham perguntado por mim. Eu levei uma surra e tanto na semana passada.”
“Se eles perguntaram por você? Claro que perguntaram. A aldeia inteira está procurando por você. Não está ouvindo a gritaria lá dentro? É tudo por sua causa, menina.”
Marta riu e disse: “Ah, deixe de brincadeira, senhor! Eu sei que eles não sentiram minha falta. E eu estou ouvindo muito bem. Não é por minha causa que eles estão gritando”.
Quando ela disse isso, Axl se deu conta de que a menina de fato tinha razão: as vozes que vinham lá de dentro não estavam falando dela de forma alguma, mas sim de um assunto completamente diferente. Ele se inclinou em direção ao vão da porta para ouvir melhor e, captando uma ou outra frase em meio às vozes exaltadas, começou a se lembrar da história dos pastores e da carriça. Estava se perguntando se deveria dar alguma explicação sobre isso a Marta quando ela, de repente, passou saltitando por ele e foi lá para dentro.
Axl foi atrás dela, antevendo o alívio e a alegria que o reaparecimento da menina iria trazer. E, para falar com franqueza, também lhe ocorreu que, entrando com Marta, talvez ele recebesse parte do louvor por ela ter voltado sã e salva. No entanto, quando Axl e a menina chegaram à Grande Câmara, os aldeões ainda estavam tão envolvidos na discussão sobre os dois pastores que só alguns deles se deram ao trabalho de olhar em sua direção. A mãe de Marta ainda saiu do meio da multidão por tempo suficiente para dizer à filha: “Então você apareceu! Nunca mais suma desse jeito, está ouvindo? Quantas vezes vou ter que repetir?”. Mas, logo em seguida, voltou a atenção para o debate travado ao redor do fogo. Então Marta lançou um sorriso para Axl, como quem diz “Eu não falei?”, e correu rumo às sombras em busca das amigas.
O quarto agora estava bem mais claro. Como ficava na beira do abrigo, a câmara de Axl e Beatrice tinha uma pequena janela que dava para o lado de fora, embora fosse alta demais para permitir que se olhasse por ela sem subir num banquinho. Naquele momento, ela estava tampada com um pano, mas os primeiros raios de sol começavam a penetrar no quarto por um canto da janela, lançando um feixe de luz no lugar em que Beatrice estava dormindo. Axl avistou, iluminado por esse raio, o que parecia ser um inseto pairando no ar logo acima da cabeça da esposa. Então, ele percebeu que era uma aranha pendurada por seu fio invisível e vertical; naquele mesmo instante, ela começou a descer suavemente. Levantando-se sem fazer barulho, Axl atravessou o pequeno quarto e passou a mão pelo espaço acima da sua mulher adormecida, prendendo a aranha dentro do punho. Depois, ficou parado ali por um momento, olhando para Beatrice. Dormindo, o rosto dela tinha uma expressão de tranquilidade que agora Axl via raramente quando a esposa estava acordada, e o súbito acesso de alegria que essa visão lhe trouxe o pegou de surpresa. Ele soube então que tinha mesmo tomado uma decisão e mais uma vez sentiu vontade de acordar a mulher, só para lhe dar a notícia. Mas percebeu que seria uma atitude egoísta e, além do mais, como ele poderia ter tanta certeza de qual seria sua reação? Por fim, voltou em silêncio para o seu banquinho e, ao sentar-se, lembrou-se da aranha e abriu a mão com cuidado.
Quando estava sentado mais cedo no banco lá fora, esperando os primeiros sinais da luz do dia, Axl tentara se lembrar em que momento ele e Beatrice haviam discutido pela primeira vez a ideia de viajar. Na hora, ele tinha achado que isso se dera durante uma conversa específica dos dois numa noite naquele mesmo quarto, mas agora, enquanto observava a aranha fugir da beirada da sua mão para o chão de terra, veio-lhe a certeza de que a primeira menção ao assunto fora feita no dia em que a estranha vestida com andrajos escuros havia passado pela aldeia.
Era uma manhã cinzenta — teria sido no último mês de novembro? Já fazia mesmo tanto tempo assim? —, e Axl estava caminhando ao lado do rio, em uma trilha coberta por copas de salgueiros. Voltava correndo do campo para o abrigo, talvez para buscar alguma ferramenta ou receber novas instruções de um capataz. De qualquer forma, foi detido por uma gritaria repentina, vinda de trás dos arbustos à sua direita. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que deviam ser ogros, e ele mais que depressa olhou em volta à procura de uma pedra ou de um pau. Depois se deu conta de que as vozes, que eram todas femininas, embora zangadas e exaltadas, não demonstravam o pânico que costuma acompanhar o ataque de um ogro. Mesmo assim, Axl abriu caminho com determinação por entre os arbustos de zimbro e foi dar numa clareira, onde viu cinco mulheres — já não muito jovens, mas ainda em idade fértil — paradas perto umas das outras. Elas estavam de costas para ele e continuavam gritando na direção de alguma coisa à distância. Axl estava chegando perto delas quando uma das mulheres notou, com um sobressalto, que ele estava ali. Mas, logo em seguida, as outras também se viraram e o encararam quase com desdém.
“Ora, ora”, uma delas disse. “Pode ser só coincidência, ou pode ser outra coisa, mas o marido está aqui. Com alguma sorte, ele vai conseguir enfiar um pouco de juízo na cabeça dela.”
A mulher que o tinha visto primeiro disse: “Nós falamos para a sua esposa não ir lá, mas ela não quis nos ouvir. Cismou que tinha que levar comida para uma estranha, mesmo sendo muito provável que a desconhecida seja um demônio ou um elfo disfarçado”.
“Minha esposa está em perigo? Senhoras, por favor, expliquem-se.”
“Uma mulher desconhecida ficou nos rondando a manhã inteira”, disse outra. “Ela tem um cabelo que vai até o meio das costas e está usando um manto feito de trapos pretos. Ela disse que é saxã, mas não se veste como nenhum dos saxões que eu já vi. Tentou se aproximar de mansinho pelas nossas costas quando estávamos lavando roupa na margem do rio, mas nós a vimos a tempo e a enxotamos. Porém, a mulher voltava toda hora e agia como se estivesse sofrendo com alguma coisa, ou ficava nos pedindo comida. Achamos que ela devia estar o tempo inteiro dirigindo o feitiço dela para a sua esposa, senhor, pois hoje de manhã já tivemos que segurá-la pelos braços duas vezes, de tão decidida que estava a se aproximar daquele demônio. E agora ela conseguiu se desvencilhar de todas nós e foi correndo lá para o velho pilriteiro, onde neste exato momento o demônio está à sua espera. Nós seguramos sua mulher o máximo que pudemos, senhor, mas os poderes do demônio já deviam estar agindo sobre ela, porque Beatrice estava com uma força que não é natural para uma mulher tão magra e idosa como ela.”
“O velho pilriteiro...”
“Ela foi para lá agora mesmo, senhor. Mas aquilo é um demônio, com certeza. E, se for atrás dela, tome cuidado para não tropeçar nem se cortar num cardo envenenado, porque é provável que o machucado nunca sare.”
Axl fez o melhor que pôde para esconder sua irritação com aquelas mulheres, dizendo educadamente: “Muito obrigado, senhoras. Eu vou lá ver o que a minha mulher está aprontando. Com licença”.
Para os nossos aldeões, o “velho pilriteiro” simbolizava tanto um ponto da região famoso por sua beleza quanto a árvore que parecia brotar diretamente da pedra na beira de um monte situado a uma pequena caminhada de distância do abrigo. Num dia de sol, se o vento não estivesse forte, era um lugar agradável para passar o tempo. De lá se tinha uma boa vista do terreno até a beira da água, da curva do rio e dos pântanos mais além. Aos domingos, era comum as crianças brincarem em volta das raízes retorcidas, às vezes se aventurando a pular da beira do monte, que na verdade tinha apenas uma inclinação suave, que não faria nenhuma criança se machucar, mas simplesmente sair rolando como um barril pelo gramado até o final do declive. Mas numa manhã como aquela, quando tanto os adultos como as crianças estavam ocupados com suas tarefas, o lugar estaria deserto, e Axl, que subiu o aclive em meio à névoa, não ficou surpreso ao ver que as duas mulheres estavam sozinhas, suas figuras não mais que silhuetas em contraste com o céu branco. Era verdade que a estranha, que estava sentada com as costas apoiadas na pedra, usava uma roupa curiosa. De longe, pelo menos, seu manto parecia ser feito de vários pedaços de pano costurados uns nos outros, e agora ele estava esvoaçando ao vento, dando à sua dona a aparência de um grande pássaro prestes a alçar voo. Ao lado dela, Beatrice — que estava de pé, embora com a cabeça abaixada na direção da companheira — parecia franzina e vulnerável. Elas estavam concentradas na conversa, mas, ao avistarem Axl subindo em direção a elas, pararam de falar e ficaram olhando para ele. Então Beatrice foi até a beira do monte e gritou lá para baixo:
“Pare aí mesmo, marido! Não dê nem mais um passo. Eu vou até você, mas não suba até aqui para perturbar a paz dessa pobre senhora, agora que ela finalmente pode descansar os pés e comer um pouco de pão dormido.”
Axl ficou esperando, como tinha sido instruído a fazer, e pouco depois viu a esposa descer a longa trilha até onde ele estava. Ela chegou bem perto dele e, sem dúvida receando que o vento levasse as palavras trocadas por eles até a desconhecida, disse em voz baixa:
“Foram aquelas mulheres idiotas que falaram para você vir atrás de mim, marido? Quando eu tinha a idade delas, tenho certeza de que eram os velhos os cheios de medos e crendices bobas, que achavam que todas as pedras eram amaldiçoadas e todos os gatos erradios eram espíritos malignos. Mas agora eu mesma fiquei velha, e o que vejo é que são os jovens que estão cheios de crendices, como se nunca tivessem ouvido a promessa do nosso Senhor de nos acompanhar o tempo inteiro. Olhe para aquela pobre desconhecida, veja por si mesmo como ela está exausta e solitária. Faz quatro dias que está vagando pela floresta e pelos campos, passando por uma aldeia atrás da outra e sendo escorraçada de todas elas. E foram terras cristãs que ela atravessou, mas mesmo assim as pessoas acharam que ela fosse um demônio ou talvez uma leprosa, embora a pele dela não tenha nenhuma marca da doença. Então, marido, espero que você não esteja aqui para me dizer que não posso dar a essa pobre mulher um pouco de conforto e alguma sobra de comida que eu traga comigo.”
“Eu jamais te diria uma coisa dessas, princesa, pois estou vendo por mim mesmo que o que você diz é verdade. Antes mesmo de chegar aqui, eu estava pensando como é vergonhoso não sermos mais capazes de receber uma pessoa estranha com gentileza.”
“Então volte para as suas tarefas, pois tenho certeza de que daqui a pouco vão começar a reclamar de novo de como você é lerdo no seu trabalho e, logo, logo, vão botar as crianças para entoar zombarias atrás de nós outra vez.”
“Ninguém nunca disse que eu sou lerdo no meu trabalho. Onde foi que você ouviu uma coisa dessas? Nunca ouvi uma única queixa nesse sentido e sou capaz de dar conta da mesma carga de trabalho que qualquer homem vinte anos mais moço.”
“Eu só estava brincando com você, marido. Claro que não tem ninguém se queixando do seu trabalho.”
“Se há crianças que zombam de nós, não é porque eu trabalho rápido ou devagar, mas porque certos pais são idiotas demais, ou provavelmente beberrões demais para lhes ensinar a ter bons modos e respeito pelos outros.”
“Calma, marido. Eu já falei que só estava mexendo com você e não vou mais fazer isso. A desconhecida estava me contando uma coisa que me interessa muito e pode vir a te interessar também. Mas ela ainda precisa terminar de me contar a história, então eu vou pedir de novo que você vá correndo tratar daquilo que precisa e me deixe voltar para ouvir o que a mulher tem a dizer e dar a ela o conforto que eu puder.”
“Peço desculpas se falei com você de um jeito ríspido.”
Mas Beatrice já tinha lhe dado as costas e começado a subir a trilha de volta para o pilriteiro e a figura de manto esvoaçante.
Um pouco mais tarde, já tendo concluído a incumbência de que fora encarregado, Axl voltava para os campos quando decidiu, mesmo sob o risco de testar a paciência dos colegas, desviar-se de seu caminho para passar pelo velho pilriteiro de novo. Pois a verdade era que, embora sentisse o mesmo desdém que a esposa pelo instinto de desconfiança das mulheres, Axl não havia conseguido se livrar da ideia de que a estranha podia de fato representar algum tipo de ameaça e estava apreensivo desde que deixara Beatrice sozinha com ela. Sentiu alívio ao ver, de longe, a esposa sozinha no promontório em frente ao rochedo, olhando para o céu. Ela parecia perdida em seus pensamentos e só notou a presença do marido quando ele a chamou. Enquanto Axl a observava descer a trilha, mais lentamente do que antes, ocorreu a ele, não pela primeira vez, que nos últimos tempos havia algo diferente no jeito de andar de Beatrice. Ela não estava exatamente mancando, mas era como se estivesse chocando uma dor secreta em algum lugar. Quando ele lhe perguntou, enquanto ela se aproximava, que fim tinha levado a estranha, Beatrice respondeu simplesmente: “Ela seguiu seu caminho”.
“Ela deve ter ficado grata com a sua generosidade, princesa. Vocês conversaram muito?”
“Conversamos, e ela tinha muita coisa para contar.”
“Pelo visto, ela disse alguma coisa que deixou você preocupada. Talvez aquelas mulheres tivessem razão em achar que era melhor manter distância dela.”
“Ela não me fez mal nenhum, Axl, mas me fez pensar.”
“Estou te achando meio esquisita. Tem certeza de que ela não botou nenhum feitiço em você antes de desaparecer como num passe de mágica?”
“Suba até o pilriteiro, marido, que você vai ver que ela ainda está descendo a trilha e partiu há pouco. A mulher tem esperança de encontrar melhor acolhida na aldeia do outro lado da colina.”
“Bem, eu vou indo então, princesa, agora que já vi que nada de mal lhe aconteceu. Deus vai ficar contente com a bondade que você praticou, como aliás você sempre faz.”
Dessa vez, no entanto, Beatrice parecia não querer que o marido fosse embora. Segurou-lhe o braço, como se precisasse se equilibrar momentaneamente, e depois encostou a cabeça no peito dele. Como por instinto, a mão de Axl se ergueu para afagar o cabelo de Beatrice, que o vento havia embaraçado. Quando abaixou a cabeça para olhar para a esposa, Axl ficou surpreso de ver que os olhos dela continuavam arregalados.
“Você realmente está esquisita”, ele disse. “O que foi que aquela estranha falou para você?”
Beatrice manteve a cabeça encostada no peito dele por mais alguns instantes. Depois, endireitou o corpo e soltou o marido. “Pensando bem, Axl, acho que talvez você tenha razão naquilo que vive dizendo. É muito esquisito mesmo como o mundo está esquecendo das pessoas e de coisas que aconteceram ontem ou anteontem. É como se uma doença tivesse contagiado a todos nós.”
“Era exatamente isso que eu estava dizendo, princesa. Veja, por exemplo, o caso daquela mulher ruiva...”
“Esqueça a mulher ruiva, Axl. O problema são as outras coisas que a gente não está lembrando.” Ela disse isso olhando para a camada de névoa ao longe, mas depois se virou e olhou bem para Axl, e ele viu que os olhos dela estavam cheios de tristeza e ansiedade. E foi então — ele tinha certeza — que ela lhe disse: “Eu sei que você está se opondo a essa ideia faz tempo, Axl, mas acho que chegou a hora de pensarmos sobre isso de novo. Há uma viagem que precisamos fazer, e não podemos mais adiá-la”.
“Uma viagem? Que tipo de viagem?”
“Uma viagem até a aldeia do nosso filho. Não é muito longe daqui, marido, nós sabemos disso. Mesmo com os nossos passos vagarosos, serão alguns dias de caminhada, no máximo. Fica só um pouco depois da Grande Planície, seguindo para o leste. E a primavera vai chegar daqui a pouco.”
“Nós podemos fazer essa viagem, é claro, princesa. Foi alguma coisa que aquela estranha lhe disse que fez você pensar nisso?”
“Eu venho pensando nisso faz tempo, Axl, mas foi o que aquela pobre mulher me disse ainda há pouco que me fez querer não adiar mais. O nosso filho está nos aguardando na aldeia dele. Quanto tempo mais vamos deixá-lo à espera?”
“Quando a primavera chegar, princesa, nós certamente vamos pensar nessa viagem. Mas por que você disse que eu sou contra essa ideia?”
“Eu não me lembro agora de tudo o que se passou entre nós, Axl, só me lembro que você sempre se opunha à ideia, mesmo quando eu estava ansiosa para fazer a viagem.”
“Bom, princesa, vamos conversar mais sobre isso quando não tivermos tarefas à nossa espera nem vizinhos prontos para nos chamar de lerdos. Eu vou seguir o meu caminho agora, mas em breve voltaremos a falar sobre isso.”
Nos dias que se seguiram, porém, ainda que tenham mencionado algumas vezes a ideia da viagem, eles nunca chegaram a conversar direito sobre o assunto. Pois descobriram que sentiam um estranho desconforto sempre que o tema era abordado e, em pouco tempo, um acordo já tinha se firmado entre os dois, do jeito silencioso como acordos são firmados entre um marido e uma mulher que convivem há muitos anos, para evitar o assunto até onde fosse possível. Digo “até onde fosse possível” porque às vezes parecia haver uma necessidade — uma compulsão, se poderia dizer — à qual um dos dois se via forçado a ceder. Mas todas as discussões que eles tinham nessas circunstâncias inevitavelmente terminavam rápido, de um modo evasivo ou mal-humorado. E na única vez em que Axl perguntou à esposa de forma direta o que a estranha havia lhe dito naquele dia em que as duas subiram até o pilriteiro, a expressão de Beatrice se enevoou e, por um momento, ela deu a impressão de estar à beira das lágrimas. Depois disso, ele passou a tomar o cuidado de evitar qualquer referência à estranha.
Passado algum tempo, Axl já não era mais capaz de se lembrar como a conversa a respeito da viagem havia começado, nem o que ela um dia havia significado para eles. No entanto, naquela manhã, sentado lá fora na hora fria antes do amanhecer, sua memória parecia ter se aclarado ao menos parcialmente e muitas coisas haviam lhe voltado à cabeça: a mulher ruiva; Marta; a estranha vestida com trapos escuros; e outras lembranças com as quais nós não precisamos nos preocupar no momento. E ele se recordara de modo muito vívido do que havia acontecido apenas alguns domingos antes, quando tiraram a vela de Beatrice.
Domingo era um dia de descanso para aqueles aldeões, pelo menos porque eles não trabalhavam nos campos. Mas ainda era preciso cuidar do gado e dar conta de muitas outras tarefas, tantas que o padre havia aceitado a impraticabilidade de proibir tudo o que pudesse ser entendido como trabalho. Assim, quando saiu para o sol da primavera naquele domingo específico, depois de passar a manhã consertando botas, Axl deparou com seus vizinhos espalhados por todo o terreno em frente ao abrigo, alguns sentados na grama irregular, outros em banquinhos ou troncos, todos conversando, rindo e trabalhando. Crianças brincavam por toda parte, e um grupo tinha se reunido em volta de dois homens que estavam construindo uma roda de carroça na grama. Era o primeiro domingo do ano em que o tempo permitia essas atividades ao ar livre, e havia uma atmosfera quase festiva. Ainda assim, enquanto estava parado na entrada do abrigo, olhando para um ponto além dos aldeões onde a terra se inclinava para baixo em direção aos pântanos, Axl percebeu que a névoa estava subindo de novo e calculou que, até o cair da tarde, eles mais uma vez estariam submersos numa garoa cinzenta.
Ele estava parado ali já fazia algum tempo quando se deu conta de que havia algum tipo de tumulto acontecendo lá embaixo, perto da cerca que contornava os pastos. A princípio aquilo não lhe interessou muito, mas depois um som trazido pela brisa chamou a atenção dos seus ouvidos e fez com que ele esticasse o corpo. Pois embora sua visão tivesse se tornado irritantemente embaçada com o passar dos anos, sua audição continuava confiável, e ele havia discernido, na confusão de gritos que emergia do grupo aglomerado perto da cerca, a voz aflita de Beatrice.
Outras pessoas também estavam interrompendo o que faziam para se virar e olhar para lá. Mas agora Axl disparou a correr por entre elas, por pouco não esbarrou em crianças em movimento e tropeçou em objetos deixados na grama. Antes que ele conseguisse chegar ao pequeno empurra-empurra, porém, a aglomeração de repente se dispersou, e Beatrice emergiu do meio dela, segurando algum objeto junto ao peito com as duas mãos. A expressão da maior parte das pessoas à sua volta mostrava que elas estavam achando graça, mas a mulher que avançou rapidamente em direção a Beatrice — a viúva de um ferreiro que morrera de febre no ano anterior — tinha as feições contorcidas de fúria. Beatrice se desvencilhou da mulher que a atormentava, seu próprio rosto parecendo o tempo inteiro uma máscara rígida e quase sem expressão. Mas, quando ela viu Axl se aproximar, as emoções afloraram em seu semblante.
Pensando sobre isso agora, Axl achou que a expressão que o rosto de Beatrice assumira naquele momento tinha sido, acima de tudo, de imenso alívio. Não que sua mulher acreditasse que tudo ficaria bem agora que o marido havia chegado, mas sua presença tinha feito toda a diferença para ela, que olhara para ele não só com alívio, mas também com certo ar de súplica, e estendera na direção dele o objeto que ela vinha protegendo tão ciosamente.
“Isso é nosso, Axl! Nós não vamos mais ficar na escuridão. Pegue rápido, marido. É nosso!”
Ela segurava diante dele uma vela atarracada e meio deformada. A viúva do ferreiro tentou arrancar a vela de novo, mas Beatrice deu um tapa na mão invasora.
“Pegue, marido! Aquela menininha ali, a Nora, me trouxe este presente hoje de manhã. Foi ela mesma quem fez, com as mãozinhas dela, achando que nós já devíamos estar cansados de passar as nossas noites no escuro.”
Isso provocou outra série de gritos e também algumas risadas. Mas Beatrice continuou olhando para Axl, com uma expressão cheia de confiança e súplica, e a imagem do rosto dela naquele momento tinha sido a primeira coisa que voltara à lembrança de Axl pela manhã, quando ele estava sentado no banco em frente ao abrigo esperando o dia raiar. Como era possível que ele tivesse esquecido daquele episódio, quando não podia fazer mais do que três semanas que aquilo havia acontecido? Como era possível que ele não tivesse mais pensado naquilo até hoje?
Embora tenha estendido o braço, Axl não conseguiu pegar a vela — a multidão não deixou que a alcançasse —, e ele disse, em voz alta e com alguma convicção: “Não se preocupe, princesa. Não se preocupe”. No mesmo momento em que dizia aquelas palavras, Axl percebeu o quanto elas eram vazias, de modo que ficou surpreso quando a multidão se aquietou e até a viúva do ferreiro deu um passo para trás. Só depois se deu conta de que aquela reação não se devia às suas palavras, mas à aproximação do padre pelas suas costas.
“Que modos são esses, em pleno dia do Senhor?” O padre passou ao lado de Axl com pisadas firmes e lançou um olhar zangado para a multidão agora silenciosa. “Então?”
“É a sra. Beatrice, senhor”, disse a viúva do ferreiro. “Ela arranjou uma vela.”
O rosto de Beatrice tinha virado uma máscara rígida de novo, mas ela não evitou o olhar do padre quando este se voltou para ela.
“Eu estou vendo que o que ela diz é verdade, sra. Beatrice”, disse o padre. “Pois bem, a senhora não esqueceu que o conselho determinou que a senhora e o seu marido estão proibidos de usar velas dentro da sua câmara, esqueceu?”
“Nenhum de nós dois jamais derrubou uma vela na vida, senhor. Nós não vamos ficar noites e noites no escuro.”
“A decisão foi tomada e os senhores têm que cumpri-la até que o conselho decida outra coisa.”
Axl viu a raiva faiscar nos olhos de Beatrice. “Isso é pura maldade, mais nada.” Ela disse isso em voz baixa, quase sussurrando, mas estava olhando bem nos olhos do padre.
“Peguem a vela”, disse o padre. “Façam o que estou mandando. Tirem dela.”
Quando várias mãos se estenderam na direção de Beatrice, Axl teve a impressão de que ela não havia entendido direito o que o padre dissera, pois ficou parada no meio do empurra-empurra com uma expressão perplexa, ainda se agarrando à vela como que apenas por obra de algum instinto esquecido. Depois, pareceu ficar tomada de pânico e estendeu a vela na direção do marido de novo, ao mesmo tempo em que um esbarrão a fez perder o equilíbrio. Só não caiu por causa das pessoas que a espremiam de todos os lados e, recuperando o equilíbrio, mais uma vez estendeu o objeto para o marido. Axl tentou pegar a vela, mas outra mão a agarrou, e então o padre disse com voz retumbante:
“Chega! Deixem a sra. Beatrice em paz e não ousem falar com ela de maneira grosseira. Ela já está velha e nem sempre sabe o que faz. Chega, eu já disse! Esse tipo de comportamento não é digno do dia do Senhor.”
Quando finalmente alcançou a esposa, Axl a abraçou, e aos poucos a multidão foi se dispersando. Quando se lembrou desse momento, ele teve a impressão de que os dois haviam ficado muito tempo assim, agarrados, ela com a cabeça encostada no peito dele, exatamente como fizera no dia da visita da mulher desconhecida, como se estivesse apenas cansada e querendo recuperar o fôlego. Ele ainda a abraçava quando o padre ordenou de novo que as pessoas fossem embora. Quando por fim se separaram e olharam em volta, eles descobriram que estavam sozinhos ao lado do pasto das vacas e do portão de ripas de madeira.
“O que importa, princesa?”, ele disse. “Pra que é que a gente precisa de vela? Já estamos mais que acostumados a andar pelo nosso quarto sem luz. E nós não nos distraímos muito bem com as nossas conversas, seja com vela ou sem?”
Ele a observava com atenção. Ela tinha um ar contemplativo e não parecia estar particularmente desgostosa.
“Sinto muito, Axl”, disse ela. “Nós perdemos a vela. Eu devia ter mantido segredo; seria um segredo só nosso. Mas fiquei tão feliz quando a menininha trouxe a vela para mim. E foi ela própria quem fez, especialmente para nós. Agora já foi. Não importa.”
“Não importa nem um pouco, princesa.”
“Eles acham que nós somos um par de idiotas, Axl.”
Beatrice deu um passo para a frente e encostou a cabeça no peito dele de novo. E foi então que ela disse, com uma voz abafada que fez Axl pensar a princípio que tinha ouvido errado:
“O nosso filho, Axl. Você se lembra do nosso filho? Quando as pessoas estavam me empurrando agora há pouco, foi do nosso filho que eu lembrei. Um homem bom, forte, justo. Por que nós temos que ficar aqui? Vamos para a aldeia do nosso filho. Ele vai nos proteger e zelar para que ninguém nos trate mal. Será que você não vai mudar de ideia sobre isso, Axl, agora que tantos anos já se passaram? Você ainda acha que nós não podemos ir até ele?”
Enquanto ela dizia isso, com voz suave, junto ao peito do marido, vários fragmentos de memória faziam força para vir à consciência de Axl, tanta força que ele teve a sensação de que ia desmaiar. Soltou Beatrice e deu um passo para trás, temendo perder o equilíbrio e acabar fazendo com que ela se desequilibrasse também.
“O que você está dizendo, princesa? Eu alguma vez fui contra a ideia de nós irmos à aldeia do nosso filho?”
“Claro que foi, Axl. Claro que foi.”
“Quando foi que eu falei que não queria fazer essa viagem?”
“Eu sempre achei que você não quisesse, marido. Mas, ah, Axl, agora que você perguntou, não estou conseguindo me lembrar direito. E por que é que nós estamos de pé aqui fora, ainda que o dia esteja bonito?”
Beatrice parecia confusa de novo. Olhou para o rosto do marido, depois olhou em volta, para o sol agradável, para os vizinhos, que tinham retomado suas atividades.
“Vamos entrar e descansar no nosso quarto”, ela disse depois de um tempo. “Vamos passar um tempo sozinhos, só nós dois. O dia está bonito, sem dúvida, mas eu estou completamente exausta. Vamos entrar.”
“Isso mesmo. Vamos sentar e descansar um pouco, fora desse sol. Você vai se sentir melhor logo, logo.”
Havia outras pessoas acordadas agora em diversas partes do abrigo. Os pastores já deviam ter saído fazia algum tempo, embora Axl estivesse tão absorto em seus pensamentos que não os ouvira. Do outro lado do quarto, Beatrice fez um som murmurante, como se estivesse se preparando para cantar, depois se virou para o outro lado debaixo das cobertas. Reconhecendo esses sinais, Axl foi andando até ela silenciosamente, sentou-se com cuidado na beira da cama e ficou esperando.
Beatrice se virou de barriga para cima, abriu um pouco os olhos e fitou Axl.
“Bom dia, marido”, ela disse por fim. “Fico feliz de ver que os espíritos decidiram não levá-lo embora enquanto eu dormia.”
“Princesa, eu quero falar com você sobre uma coisa.”
Beatrice continuou fitando o marido, seus olhos ainda apenas entreabertos. Depois, ergueu o tronco e se sentou, seu rosto cruzando o raio de luz que antes iluminara a aranha. O cabelo grisalho de Beatrice, solto e embaraçado, caía-lhe abaixo dos ombros com rigidez, mas Axl mesmo assim sentiu uma agitação de felicidade dentro do peito ao ver a mulher sob a luz da manhã.
“O que é que você tem para dizer, Axl, que não pode nem esperar eu esfregar os olhos para espantar o sono?”
“Nós já conversamos antes sobre fazer uma viagem. Bem, a primavera está quase chegando e talvez esteja na hora de nós partirmos.”
“Partir, Axl? Mas quando?”
“Assim que for possível. Nós não vamos demorar. A aldeia pode perfeitamente passar alguns dias sem nós. Vamos conversar com o padre.”
“E nós vamos visitar nosso filho, Axl?”
“Claro, é para isso que vamos viajar: para visitar nosso filho.”
Lá fora, os passarinhos agora cantavam em coro. Beatrice olhou para a janela e para o sol que atravessava o pano pendurado na frente da janela.
“Tem dias que me lembro dele com bastante clareza”, disse ela. “Aí, no dia seguinte, é como se um véu tivesse coberto minha memória. Mas nosso filho é um homem bom e íntegro, disso eu tenho certeza.”
“Por que ele não está aqui conosco agora, princesa?”
“Não sei, Axl. Talvez ele tenha discutido com os anciãos e teve que ir embora. Eu já perguntei a várias pessoas aqui da aldeia e ninguém se lembra dele. Mas ele nunca teria feito nada que lhe causasse vergonha, disso eu tenho certeza. E você, Axl? Também não consegue se lembrar de nada?”
“Quando eu estava lá fora agora há pouco, aproveitando o silêncio para tentar recordar o máximo que eu pudesse, muitas coisas me vieram à mente. Mas eu não consigo me lembrar do nosso filho, nem do rosto nem da voz dele, embora às vezes tenha a impressão de conseguir vê-lo quando ele ainda era um menininho, e eu andava de mãos dadas com ele pela beira do rio. Ou de uma vez em que ele estava chorando e eu estendi os braços em sua direção para consolá-lo. Mas que aparência ele tem agora, onde está morando, se já tem filhos ou não, de nada disso eu me lembro. Eu tinha esperança de que você se lembrasse de mais coisas, princesa.”
“Ele é nosso filho”, disse Beatrice. “Então eu consigo sentir coisas a respeito dele, mesmo que não me lembre com clareza. E eu sei que ele está ansioso para que nós saiamos daqui e passemos a morar com ele, sob a proteção dele.”
“Ele é carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. Por que não iria querer que nós fôssemos para perto dele?”
“Mesmo assim, eu vou sentir falta daqui, Axl. Deste nosso quartinho e desta aldeia. Não é fácil sair de um lugar que você conhece há tanto tempo.”
“Ninguém está pedindo para fazermos coisas sem pensar, princesa. Enquanto eu esperava o sol nascer ainda há pouco, fiquei pensando que nós vamos precisar ir até a aldeia do nosso filho para conversar com ele antes, pois, mesmo sendo os pais dele, não podemos chegar lá um belo dia e exigir que nos deixem morar na aldeia como se fizéssemos parte dela.”
“Tem razão, marido.”
“Tem outra coisa que me preocupa. Pode ser que essa aldeia fique a apenas alguns dias de distância como você diz, mas como vamos saber que caminho seguir para chegar lá?”
Beatrice ficou em silêncio, olhando fixamente para um ponto diante de si, seus ombros oscilando de leve ao ritmo de sua respiração. “Acho que nós vamos encontrar o caminho sem muito problema, Axl”, ela disse por fim. “Mesmo que ainda não saibamos exatamente onde fica a aldeia dele, eu já fui várias vezes a aldeias próximas com as outras mulheres para negociar nosso mel e nosso estanho. Conheço até de olhos vendados o caminho para a Grande Planície e para a aldeia saxã do outro lado, onde muitas vezes descansávamos. A aldeia do nosso filho só pode ficar um pouco depois disso, então não vamos ter muita dificuldade de encontrá-la. Axl, nós vamos mesmo viajar em breve?”
“Sim, princesa. Vamos começar a nos preparar hoje mesmo.”
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